A criação do mundo


Datas

Devia assinalar aqui o 31 de Janeiro, pelo que representou e por ser tema de outro Porto menos acomodado, mas prefiro dedicar-me, amanhã, ao primeiro de Fevereiro, debitando uma ou outra ideia a propósito do regicídio e da ideia que tenho do ser monárquico no século XXI. (se tiver vagar)

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Da democracia

Nas eleições parlamentares de Cuba se vê a maturidade do regime: foi mais expressiva a vitória de Raúl Castro, que obteve 99,4% dos votos no círculo em que concorreu, do que a do irmão e líder revolucionário, Fidel, que, também num distrito de Santiago, não foi além de modestos 98,3%.

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Loja sueca

Sentado no ektorp e de pés no arden ruda, folheio um livro à luz do lersta, indiferente ao que debita a televisão assente no lack. Paro para pensar nesta bizarra suedização e concluo que o mais curioso é ter comprado, no santuário do DIY para a casa, o melhor queijo azul que por aí se encontra. De leite biológico, dizem eles. Mas também fazem questão de explicar que, para encherem almofadas ou edredões, não mataram gansos, patos ou periquitos. Depenaram-nos, evidentemente, depois de os ditos terem ajustado contas com o Criador, inumados em forma de foie-gras, magret e têxtil-lar que não se pode comer.

A propósito, maldito seja eu por gostar tanto de foie-gras, coisa que resulta da crueldade e é, afinal, tão pouco sueca, em comparação com aquele frasco de arenque com molho de mostarda que trouxe, para me sentir escandinavo, e que, em boa verdade, estou relutante em abrir. Vai mais um naco de queijo.

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Notícias Google


Existem legos há precisamente 50 anos, e há cinco minutos senti-me pequenino, mesmo que apenas durante cinco segundos, ao abrir o motor de busca. Quis brincar e aqui o faço, pois o blogue é exactamente isso, um brinquedo que cresce com posts encaixados até às nuvens.

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Barack-tober



As promessas eleitorais de Barack Obama no talk-show de David Letterman. Pegando nas últimas presidenciais portuguesas, imaginem Cavaco, Alegre ou Soares a fazer o mesmo. Pois, não imaginam...

(via Blasfémias)

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Obama e os media

Andam por aí alguns tenrinhos que, ufanos da condição de "watchdogs" da Imprensa que assumiram sem nomeação, apontam Barack Obama como o candidato favorecido pelos media. Se falam de Portugal perdem tempo e palavras, atendendo a que me parece improvável que os candidatos americanos leiam os nossos jornais. Porém, se se referem à Imprensa dos Estados Unidos, é evidente que não sabem o que dizem. O senador do Illinois acabou de ganhar as primárias da Carolina do Norte, e todos destacam que o conseguiu com a adesão maciça da população negra, algo que não puderam fazer quando ele venceu no Iowa, um estado "branco". Esta curiosa insistência em nada beneficia Obama, pois, tratando-se de um país onde a questão racial está longe de ser resolvida, carreará para outros lados muitos votos de democratas brancos. Aliás, o Conselho Editorial do "The New York Times", numa prática que não existe entre nós mas é de enorme credibilidade entre os americanos, já manifestou o apoio a Hillary Rodham Clinton.

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Duas pinceladas de actualidade

Emergência médica

Pedir a cabeça do ministro é um caminho fácil, mas não conduz à resolução de um problema que é quase civilizacional. O telefonema para o INEM, lançado para a esfera mediática para combater a intocabilidade dos bombeiros, indicia um mal que, não sendo de modo algum geral, está há muito identificado e nunca foi combatido. Qualquer pessoa que já tenha tido contacto com algumas corporações de bombeiros, no Interior, sabe que o voluntariado, muitas vezes, mais não significa do que uma vontade de afirmação pessoal em sociedades de horizontes limitados. É o fascínio da farda, são os metais dourados que refulgem nas retinas das moças, são os bailaricos, as fanfarras, as dispensas do trabalho para tocar nas fanfarras... Não é a regra, repito, mas ainda funciona muito assim, e não são poucos os voluntários sem preparação efectiva, até no que ao combate a fogos respeita (lembre-se a tragédia de Armamar, resultante da incapacidade de leitura das circunstâncias previsíveis de um incêndio florestal). Torna-se notório que o ministro quer implementar um sistema sem assegurar que não há peças enferrujadas, o que é condenável, mas (sem pôr em causa o imprescindível e louvável papel dos voluntários) esquece-se que os ditos "soldados da paz" formam um grupo de pressão demasiado poderoso, em boa parte por causa da aura de santidade que impede o questionamento duma série de coisas.


Corrupção

Caem o Carmo e a Trindade por causa de uma declaração do bastonário da Ordem dos Advogados. António Marinho e Pinto, queira-se ou não, tem o mérito de agitar as águas. Sempre teve, mesmo quando não fala com o mais profundo conhecimento dos assuntos. Não fazem sentido os gritinhos ofendidos de parlamentares e quejandos (é antidemocrático falar em "classe política", porquanto a política deve ser a cidadania aberta a todos, não um privilégio de classe). Dos políticos, portanto, é apenas expectável que exijam investigações que dissipem as dúvidas, dúvidas essas que subsistem com ou sem declarações de bastonários. Dizer que o bastonário tem de concretizar as acusações é folclore, na medida que não é responsável pela investigação criminal neste país. Assim, no meio de tudo isto, fica a impressão de que haverá um pacto de silêncio que vincula todos os que assumem determinados cargos e que, por não o cumprir, Marinho e Pinto é um alvo a abater. Mas isso não passa de uma impressão, mais coisa de cidadão do que de blogger.

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Blogue preparado há 500 anos

«It's anniversary time. The genesis of the Greatest Work of Art Ever, Anywhere – so popular that the curators of the Vatican Museums have made seeing it insanely complicated and expensive in an effort to reduce the crowds – began 500 years ago this spring, when Pope Julius II persuaded a reluctant Michelangelo Buonarroti to take on the painting of the Sistine Chapel ceiling.»

Assinala-se agora o quinto centenário do momento em que o designer privado deste blogue, Michelangelo Buonarroti, começou a trabalhar no cabeçalho. Quando escolhi o detalhe d'A Criação de Adão que encima esta página, soube que estava a ser pouco original, mas teve todo o significado, então, usá-lo, associado a um título que muitos identificarão com a obra de Miguel Torga, mas que, enfim, foi definitivo mal me surgiu na cabeça. A coisa rola, não estou descontente com a forma que isto tem ganho, algo diferente dos dois blogues precedentes. E assim os dias e as noites se vão sucedendo

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Les envahissements -5

Invasões fizeram abrir os olhos

de um país parado no tempo




Olharmos para uma sequência de eventos no passado, como as invasões francesas, e pensar que a compreendemos ao nomear heróis e batalhas é, muito simplesmente, o mesmo que cingir o retrato do país que hoje somos às tricas noticiáveis com que nos brinda a classe política. Compreender esse Portugal do primeiro quartel de oitocentos é coisa bem mais complexa do que ter presentes os episódios que fazem a história militar. É, na verdade, pensar numa sociedade de Antigo Regime, em que uma enorme maioria rural vivia, de uma ou de outra forma, na servidão que alimentava um punhado de privilegiados.

É mais fácil perceber as elites, porque mais documentadas. Mas, ainda por cima tendo a revolta popular sido preponderante no quadro da Guerra Peninsular, há que ter o cuidado de perceber que isto não era, propriamente, um país de afrancesados contra a aristocracia dominante, que isto não se cingia às subtilezas da diplomacia. Nunca assim é. Qualquer processo revolucionário, antes de cativar as massas, parte de uma elite. No caso, porém, as massas agiram em função do entendimento que tinham do mundo, mais pragmático que patriótico.

Não custa perceber. Se olharmos para um passado recente, isto é, para o país rural do Estado Novo (fechado à inovação e à modernidade) , basta torná-lo mais atrasado e hermético para imaginar o que seria no início do século XIX. Sendo Portugal um sítio onde o fenómeno urbano foi modesto (Vitorino Magalhães Godinho associou a isso o nosso atraso), a sociedade de Antigo Regime que tínhamos (e que ainda não foi integralmente mudada) era essencialmente rural. Na Época Moderna, isto é, no período histórico que vai do fim da Idade Média até às revoluções liberais, nove décimos da população trabalhavam directamente a terra. Se lhes juntarmos os proprietários, os que entravam no negócio das rendas e outros, vemos que quase toda a gente estava ligada à terra. Estima-se que, para alimentar dez pessoas, oito ou nove tinham de trabalhar na agricultura.

Ainda subsiste a ideia de que a terra é a mais fiável e dignificante forma de património. Isso vem na sequência desses tempos e terá sido, quando todos gritavam “vêm aí os franceses!”, a mais premente preocupação. Um português rural pouco se importaria com as hesitações do príncipe regente ou com a debandada da Corte para o Brasil. Mas via o aceso à terra ameaçado.

Num recentemente reeditado ensaio sobre a reacção popular à invasão de Junot (“Ir prò Maneta”, Alêtheia Editores), Vasco Pulido Valente clarifica à partida o assunto: “Os rebeldes portugueses não queriam única ou principalmente destruir o exército do invasor: queriam o domínio do território”. Como sempre sucede nas nossas sociedades, os miseráveis eram maioritários e eram-no de uma forma esmagadora. Mas não podemos pensar que sonhavam com a equidade. Nestas sociedades de privilégios, os privilegiados lutavam para manter a condição e os restantes queriam a ela alcandorar-se. Pelos imbricados meandros de um mundo rentista, os da base da pirâmide trabalhavam desalmadamente para sustentar os que estavam em patamares superiores, assegurando a custo a própria sobrevivência. Mas não veriam além dessa ordem “natural”, e as revoltas – não só contra os invasores, mas também contra os poderosos – não buscavam mudanças de fundo.

Mesmo entre os letrados, as ideias de mudança, antes das invasões, eram incipientes. Porém, com a quantidade de estrangeiros que por cá passaram, trazendo na bagagem livros e ideais, a guerra agitou a pasmaceira. E foi na sequência disso que D. João VI, contrariado, voltou mais tarde do Brasil, para assumir o papel decorativo que lhe haviam reservado os vintistas.

Jornal de Notícias, 18 de Dezembro de 2007

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Simple past

No Palácio de Cristal

Aqui se demonstra que eu - o que dignamente caminha sentado sobre rodas - fui a inspiração para o célebre anúncio do Restaurador Olex/Petróleo Olex: "Um branco de carapinha não é natural".

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Aгитпроп

Ora o Movimento Informação é Liberdade (MIL) vai legalizar-se. Talvez possam agora, finalmente, dizer o que são e ao que vêm. Ao que vêm, porque até já têm um qualquer esquema agitprop, com a nomeação de representantes nas redacções. Nada contra (excepto no caso em que um director de jornal se mete nestas coisas proselíticas, o que dá sempre um ar de intimidação, por mais que seja um exercício de cidadania). Bom, suponho que, agora, vão lançar as sementinhas da putativa ordem e dessa falácia que é a auto-regulação de classe. É que o jornalismo, já suficientemente passível de ser regulado pela lei e pelo bom senso, morrerá se não houver um mínimo de rebeldia e um máximo de individualidade. Não existe espírito de corpo nem pode existir, não faz sentido que se formalize uma anacrónica corporação. Existem as questões do foro laboral, que são do âmbito dos sindicatos. E existe o direito à reflexão sobre a profissão, pessoalmente ou no âmbito do movimento associativo, no qual tanto o MIL como os sindicatos se enquadram. Ordens profissionais de filiação obrigatória nada têm a ver com a liberdade necessária ao exercício do jornalismo. Agradam apenas porque dão sainete a uma classe que gosta de se dar ares em vez de conquistar respeito. De resto, são apenas pasto para abusos. Porque só um débil mental aceitará receber lições de deontologia de determinados figurões que se põem em bicos de pés, apenas uma criatura acéfala achará que é bom cair nas garras penalizantes de um grupo de amigos que se diz "a classe".

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Hora dos fantasmas

INSÓNIA

Noite, que em mim
Acendes a memória
Escura dos amanhãs,
Aquieta esse teu fogo
E dorme.

Sonha, noite, até ao fim.
Conta-me uma história.
Leva-me, seguro, às manhãs
De um tempo novo.
E acorda.


(publicado originalmente aqui)

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E ainda ainda...

Maria de Fátima Bonifácio sei eu quem é, conheço o que faz, sei da validade para o bem comum que tem sido a vida profissional dela (se é que a produção de conhecimento ainda é bem comum, nesta sociedade de autómatos), sei, agora, que foi a única pessoa capaz de dizer coisas acertadas neste debate televisivo, designadamente a propósito da facilidade com que se atenta contra a liberdade individual (não, ainda não acho que se aplique a tudo, ainda não sou liberal recalcitrante). Ninguém com dois dedos de testa contesta a promoção da saúde pública, nenhum fumador acha que tem o mais salutar dos hábitos, nenhuma pessoa bem educada gosta de incomodar terceiros. Porém, legislar radicalmente e transformar os fumadores em intocáveis (no sentido indiano, não no sentido Eliot Ness) é, mais do que um abuso por parte da classe política, um preocupante sinal não daquilo para onde caminhamos, mas do que já somos: um colectivo em que a verdade oficial justifica a intolerância e a negação da diferença, rejeitando a individualidade do ser humano e a liberdade de errar. Se quiserem ter a coragem de equiparar o tabaco à heroína, ilegalizando-o, o tal "espírito da lei" fará sentido. Como agora se apresenta, tem apenas aquele ar sórdido da pequena vingança, da reles inveja, da mesquinhez.


Adenda: será de bom tom dizer que a historiadora teve um início de debate desastroso, porque dos expedientes que usou para fazer passar determinada mensagem (a da subjectividade) só ficaram os expedientes propriamente ditos. Por exemplo, por muita razão que tenha (e até estava num tom de brincadeira), é logo rotulada de bruxa má quando diz que há restaurantes onde não se devem levar crianças...

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E ainda...

"Com três semanas de lei, já temos menos enfartes do miocárdio em Portugal"

(a frase é de um tipo que diz que é médico e é de uma coisa qualquer de prevenção do tabagismo; não percebendo eu nada do assunto, custa-me a acreditar que haja alguma validade científica nisto)

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A cartilha

Se bem entendo a coisa, embora isto (ainda o "Prós & Contras") tenha resvalado para o conceito esotérico de "espírito da lei", os direitos dos não fumadores valem mais do que os dos fumadores, ou, melhor, tudo não passa da instituição de uma moral de Estado.

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Sem máscaras

Francisco George, o director-geral da Saúde, e um tal de Constantino Sakellarides estão agora, na televisão, a admitir que pretendem a interdição total de fumar, excepto nos espaços privados e na rua (para já, para já...), e, em paralelo, alarvemente satisfeitos por esta lei não significar senão esse integral banimento. Dentro dessa casta dos promotores da vida eterna, acabam por ser mais honestos do que os legisladores, se bem que sejam todos a mesmíssima corja.

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20 de Janeiro

Quartanistas de Letras, Coimbra, 1946

Hoje farias anos, querido Pai. Já não seriam poucos. Mesmo que não tivesses partido tão cedo, provavelmente assinalá-los-ia, de igual modo, nesta ausência de ti a que nunca soube habituar-me completamente. Suponho que não há mal nisso, apenas um sinal do meu carinho, agora perdido na confusão de um limbo de que aos poucos sairá, porque aos poucos nos molda esse paradoxo de resignação e inconformismo que é o tempo. Pela primeira vez, não estou com a nossa querida Nelinha neste dia. E tenho muita pena de a minha fé não ser feita de certezas, o que talvez a transforme numa espécie de não-fé na qual, enfim, também sou incapaz de acreditar totalmente. Seria bom saber que a recebeste nalgum espaço de serenidade, onde hoje brindariam a nós, que aqui persistimos, cumprindo a estranha ordem natural das coisas. Sei-vos juntos, pelo menos, nesse fortificado recanto do meu coração, até que também ele se cale. E, por via das dúvidas, aqui brindo a vós. Será uma maldade minha, talvez, pôr aqui a caricatura do teu livro de curso. Lembro-me que gostavas pouco dela e, de facto, causam-me estranheza aqueles cifrões. Coisas de miúdos, não saberias então, talvez, que a tua riqueza seria altruísta, infinitamente mais humana do que fiduciária. Mais justa. Mais perene. É a essa riqueza, a esse exemplo que em mim tento reconstruir todos os dias, que ergo a taça. Parabéns.

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Les envahissements - 4

Querer ser o senhor do mundo

em nome de ideais de liberdade




Quem era, afinal, esse homem que três vezes nos invadiu sem cá ter posto os pés? E o que era, para ele, Portugal? Napoleão Bonaparte, jovem pouco promissor de uma família da pequena aristocracia, fascinou, espezinhou, dominou. Em nome de ideais que, como tantas vezes sucede, são em boa parte o pretexto para materializar ambições de grandeza. Numa vida balizada por ilhas, da Córsega onde nasceu à recôndita Santa Helena onde foi escondido até à morte, foi no velho continente europeu que o génio militar dele fez imperador.

Começando pela segunda das perguntas atrás formuladas, podemos dizer que Portugal, para Napoleão, mais não era do que um despojo de guerra a partilhar, no esquema de vassalidades imperiais em que queria redesenhar a Europa, além de ser uma porta que importava fechar ao inimigo inglês. Como conceito, Portugal era nada, e mesmo o império luso era inatingível, porquanto a tricolor pouco valia no mar.

Já a outra questão – quem era esse homem? – reveste-se da complexidade evidente que impede resposta adequada em tão pouco espaço. Era um génio militar, não duvidemos, mas não pelo que tenha inovado, antes pela agilidade estratégica que revelava no campo de batalha. Pelo pragmatismo, pela rapidez de acção, pela capacidade de surpreender. Construiu uma máquina de guerra total e, mesmo quando quereria a paz, teve de centrar no combate militar toda a sua política e todo o seu reinado: o reinado de um imperador republicano, isto é, um enorme paradoxo.

Essa dualidade desconcertante pode, na forma resumida a que aqui nos obrigamos, ser facilmente descrita: sob a mesma pele vivia um homem que, em simultâneo, queria tornar universais os valores saídos da Revolução Francesa (na realidade, um processo mais longo, que durou até meados de oitocentos) e ser senhor do mundo.

Estudante mediano ou até medíocre – não faltam na História exemplos de grandeza, boa ou má, saída da pequenez -, Bonaparte foi, diz-se, um jovem excluído, menosprezado pelos colegas, fosse pela baixa estatura, pelo sotaque tosco e pelos pontapés na gramática, pelo temperamento egoísta e ensimesmado. Mas foi nesses mesmos tempos de exclusão que – passe a dedução quiçá abusiva – preparou a vingança, bebendo-a dos clássicos. Cícero ou Tito Lívio desenvolveram nele o fascínio pela grandeza imperial, mas foi sobretudo Plutarco, com as “Vidas de homens ilustres”, quem nele fez germinar ao longo da vida o ideal em que se reconstruiu.

Alexandre Magno foi a maior de todas as referências de Bonaparte, até pelo forma como este imitou aquele ao preparar a campanha do Egipto, fazendo acompanhar os exércitos de sábios e da instrumentação científica da época. Falhou, porém, a conquista do Mundo e cingiu-se ao domínio da Europa (nas palavras de Patrick Rambaud, “quis ser Alexandre, mas contentou-se em ser Carlos Magno”).

Governou ambiguamente. Enquanto usava mão de ferro para suster os desmandos da Revolução, transpunha para os códigos legislativos os ideais revolucionários. Com base na vontade popular (aprovação por plebiscito), construiu um poder de natureza monárquica. Partindo da liberdade, buscou a submissão dos restantes. Perdeu-se, pois, na ambição da hegemonia francesa, obtida através de conquistas ou assegurando a submissão dos restantes. Como os imperadores e reis medievos, quis repartir a Europa por vassalos (assim foi, por exemplo, com a colocação do irmão José Bonaparte no trono de Espanha; assim seria em Portugal, se os termos de Fontainbleu tivessem sido aplicados). Só os ingleses tinham capacidade de conter essa ambição. Contiveram-na.

Jornal de Notícias, 11 de Dezembro de 2007

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Luz verde para a ignomínia

Calabasas, cidadezita californiana de 25 mil habitantes, acabou de dar o primeiro passo, aprovando um regulamento que levará à interdição de fumar em 80% das casas arrendadas. De tão asséptica que até flores crescerão nas sanitas e as andorinhas farão ninho nos contentores do lixo, a terriola já havia regulamentado a possibilidade de fumar ao ar livre, delimitando zonas específicas para o efeito. Regulamentar o que as pessoas podem fazer dentro de casa, não se tratando de crimes tipificados (é evidente que não é legítimo matar pessoas no remanso do lar), poderá parecer mais um desses episódios pitorescos que só na América. Mas não. Há uns anos, ter de ir fumar para a rua também era coisa lá dos States. E nada disto tem a ver com cigarros. Admito que a estupidez é a principal razão que me levou a ser fumador, mas assusta-me que possam surgir por aí políticos ainda mais palermas do que os que temos tido, empenhados em limitar a minha capacidade de ser estúpido no meu próprio espaço. O caminho da ignomínia é fácil e tentador. Basta que alguém dê o mote para que a bola de neve vá ganhando forma. Foi isso que acabaram de fazer esses imbecis que governam a pacata e imaculada cidade de Calabasas.

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Dos cheiros nauseabundos

Ainda hoje se gasta espaço noticioso por causa de um cheiro qualquer que se sentiu, há dias, em determinada zona de Lisboa, talvez pelo cosmopolitismo que seria confirmado por um ataque com gás sarin, anthrax ou qualquer nova praga que os terroristas internacionais tenham na manga. Afinal, foi uma funcionária da Faculdade de Farmácia quem, inadvertidamente, despejou no exterior o reagente contido num frasco danificado. Oh, inclemência!, quão mundano foi, afinal, o nauseabundo susto de Entrecampos. Mais piada teve, afinal, a minha façanha liceal, já bem distante no calendário, nascida do acaso de uma descoberta. E que descoberta terá sido essa?, perguntarão. Coisa simples, puro empirismo de um então aluno de quimicotecnia que mexia onde não devia. Aconteceu, portanto, que descobri, por acaso, ser o sulfureto de amónio a substância usada na produção, industrial ou artesanal, dos carnavalescos peidos engarrafados (designação bem mais poética do que o asséptico "bombinhas de mau cheiro"). Vai daí, num intervalo das aulas, em secreta missão de que só dois ou três tinham conhecimento, despejei gotas do pestilento líquido em todas as bancas do laboratório de Química, sendo glorificado depois, sempre em segredo, por ter assegurado um dia sem aulas naquele sector do Liceu de António Nobre. Depois, sob ameaça do congelamento das notas de toda a gente, acabei por confessar a autoria do crime à professora. Nada me aconteceu e, estupefacto, ainda fui elogiado pela frontalidade de assumir o erro.

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Mutatis mutandis

Dizia permanentemente um colaborador desportivo do JN, daqueles da velha guarda, que já não existem, "o tempo é um grande mestre". Entre outras frases nele emblemáticas, talvez pelo permanente estado de grão na asa. Ora, diz-se da qualidade das produções artísticas que é revelada pela forma como sobrevivem à prova do tempo. Porém, também os artistas, ou mais ainda os artistas, estão sujeitos a esse escrutínio de Cronos, arrastando com eles a obra. Ou seja, a comparação de filmes que vos proponho destina-se, justamente, a avaliar a erosão cronológica. Evidentemente, num e noutro canta o mesmíssimo produto da Criação que dá pelo nome de David Lee Roth.


Van Halen, Jump


David Lee Roth, Jump

(via caixa de comentários de Os Anos do Metal)

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Liberdade

Várias vezes referi - e continuarei a fazê-lo - que o Movimento Informação é Liberdade mais não é do que uma plataforma de combate em nome da criação de uma ordem dos jornalistas (em minúsculas, porque não existe), tão sonhada por alguns. Sempre tenho dito que sou contra essa ideia. O argumento do policiamento da deontologia não colhe, pois pode ser feito pelos pares que nos representem no seio da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (algo que me parece ser uma reivindicação justa), mas, o que realmente me tira do sério são as veleidades respeitantes ao acesso à profissão. Aí - deixem-me engolir em seco - sou absolutamente liberal. Para se ser jornalista basta saber ler e escrever. Porquê? Porque só esse pressuposto básico pode garantir a diversidade no seio da profissão, única forma de assegurar informação livre, não normalizada, não formatada, não condicionada. Aos responsáveis dos meios de comunicação social competirá decidir se querem ou não apenas licenciados, se querem ou não apenas licenciados em jornalismo (a exclusividade, por decreto, dessa forma de acesso, seria um grave atentado à liberdade de expressão). A qualificação é algo a que a profissão deve ambicionar, mas o fecho de portas pode significar que a liberdade fica do lado de fora. Em função do que cada órgão de informação for e produzir, aí estará o mercado a ditar as suas leis. Sem necessidade de figurões que queiram ser controleiros. Porque a liberdade de expressão não pode ser controlada senão no que respeita ao cumprimento da lei. E mesmo aí não pode ser travada.

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Tamanho é documento?...

Sinceramente, já estou cansado de ouvir falar no "maior banco privado português". Falo dessa muleta dos senhores repórteres, que acabam por dizer bem poucas vezes o nome da instituição e que, por do "maior banco privado português" se tratar, julgarão, talvez, fazer parte das grandes coisas que se decidem na Assembleia Geral do "maior banco privado português". Ainda há pouco uma rapariga, num minuto de directo televisivo, fez perto de dez referências ao "maior banco privado português", enquanto o nome verdadeiro da coisa pouco se ouviu. Ora, eu impaciento-me, mas nem sei porquê: se pelo constante recurso a chavões deste tipo, evidentemente cansativo, se por me estarem sempre a lembrar que sou titular de uma das menores contas do maior banco privado português.

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O esférico rolando sobre a erva

"É algo que nós temos grande expectativa sobre o mesmo."

(Luís Filipe Vieira, falando do novo jogador do benfica, Sepsi)

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Chateados

Se o futebol ainda não apareceu neste blogue é porque nada de palpitante acontece. Estamos agora com onze pontitos de vantagem, coisa trivial, natural ordem das coisas. Enfim, nada havendo a dizer, restam-nos as declarações do treinador do benfica, depois do empate com o Leixões. "Os jogadores têm de estar fodidos", disse Camacho, na conferência de Imprensa, com as letras todas, num louvável esforço de adaptação ao vernáculo luso. De tal forma o discurso do espanhol é cristalino que as legendas se tornam desnecessárias, embora assim não tenham pensado na SIC-Notícias, pois traduziram o estranho linguajar: "É natural que os jogadores estejam chateados".

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Malefícios do tabaco



(Via Arrastão)

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Les envahissements -3

Empurrados para um novo reino

onde o velho ia sendo esquecido




Sempre as anedotas são facilmente assimiladas. Sabe-se que o senhor D. João VI, enquanto esteve nos brasis, viu os médicos da Corte prescreverem-lhe banhos de mar, para alívio de alguma maleita agora incerta. Horrorizado com a água ou com a grandeza do oceano, era transportado numa liteira com grades, vestido, e mergulhado rapidamente pelos escravos que o carregavam. Episódios desses, além de criarem o estereótipo patético do monarca que fugiu em 1807, com Junot nos calcanhares, escondem a complexa importância dessa deslocalização para o Rio de Janeiro da capital do império.

Assim não pensam os brasileiros, que vêem no “Clemente” uma espécie de pai da pátria, pois a transferência da Corte para além-Atlântico foi a chave para conservar a unidade territorial de uma vastíssima colónia, até então nada mais do que uma fonte de alguns recursos e um mercado protegido para a metrópole. A partir de 2008, o Brasil pôde progredir, não apenas no plano da prosperidade material mas enquanto conceito, e assim definhou, também, o projecto de um grande império português baseado na América do Sul.

Porque, às vezes, é legítimo simplificar o complexo, há que insistir na circunstância de o príncipe regente, entalado entre dois enormes poderes que o transcendiam, ter sido empurrado para a água pelos ingleses, que pretendiam não apenas o acesso aos portos de Portugal, para combater em terra as tropas napoleónicas (no mar, Trafalgar selara em definitivo a hegemonia britânica). Em pleno “take-off” prematuro da industrialização, jogaram aqui a cartada decisiva para invadir, comercialmente falando, um colosso que viam em mãos erradas.

Sebastião José de Carvalho e Melo formalizara um inabalável sistema proteccionista em torno da América portuguesa: todo o trato tinha de ser feito com a metrópole e a industrialização das colónias era travada, transformando os que ali viviam e tentavam prosperar em portugueses de segunda. Ora, além do mal-estar que isso provocava na colónia, impedia os ingleses de pôr o pé em ramo verde, cenário radicalmente alterado com este processo.

Desembarcado em Salvador a 22 de Janeiro de 1808, o príncipe regente apenas esperou uma semana para outorgar a carta régia de “abertura dos portos às nações amigas”. Ora, as ditas nações amigas eram uma e uma só, que rapidamente passou a dominar o trato com a colónia. Até na metrópole, quando já cá andavam tropas britânicas, a política de terra queimada de Arthur Wellesley, destinada a dificultar a vida aos exércitos napoleónicos, passou por destruir, “en passant”, diversas estruturas da proto-indústria lusa, designadamente de algumas companhias privilegiadas do pombalismo.

Lá longe, a realeza acostumava-se ao calor e a todos os encantos dos trópicos, excepção feita a D. Carlota Joaquina, a sempre desavinda mulher do regente, que se via no desterro. À rainha, a demencial D. Maria, pouco terá importado ter passado os últimos anos da vida num território tão distante dos seus tempos de glória. Mas D. João e o herdeiro, D. Pedro, terão sido os primeiros brasileiros do coração.

Ao Rio de Janeiro, até então pouco mais do que uma aldeola, a Corte e a abertura internacional fizeram chegar a “civilização”, criaram um novo reino que fez esquecer o velho Portugal. Ergueram palácios, fizeram festas, construíram um esplêndido jardim botânico, enquanto por cá se vivia no medo e na revolta. Uma revolta que, como noutra ocasião se revelará, foi mais do povo do que das elites, mas também, contrariamente ao que se possa julgar, mais pela posse da terra do que por um fervor pátrio que, afinal, não era assim tão ardente.

Jornal de Notícias, 4 de Dezembro de 2007

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The west coast is for loading and unloading only

Viver em terra de aldrabões, demagogos, pusilânimes, vigaristas, ladrões, boçais, trogloditas, dissimulados, incompetentes, ineptos, irresponsáveis, pacóvios, timoratos, cinzentos, ignaros, gabarolas ou indolentes é algo a que qualquer pessoa, em Portugal, está habituada. Pouco poderei acrescentar, portanto, a esse folhetim do aeroporto, além da perplexidade que sempre me causou: dou de barato que Lisboa precise, com alguma urgência, de encontrar soluções para ultrapassar a saturação da Portela, mas nunca conseguirei compreender o que leva tanta gente a apontar o novo projecto, seja ele qual for, como o milagre da competitividade do país.

Nem para país de serviços prestamos, nunca prestámos. Nos tempos da glória imperial, os holandeses, primeiro, e os ingleses, depois, limitaram esta nossa pátria à condição de armazenista de pimenta, arrecadando todos os proventos do posterior transporte e do retalho. Agora, queremos, orgulhosamente, ser a plataforma por onde outros passam. O futuro de Portugal, gritam-nos, está aí e num comboio que já nem "pouca terra" saberá dizer. Porque desistimos - ou desistem, por nós, todos os que se ufanam das paquidérmicas obras de regime - de ser produtivos, inovadores e pujantes. Ou, pelo menos, de sonhar com isso.

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Máquina do tempo

Foto do meu Pai

Eu e a Manecas, há quarenta anos e picos, em Coimbra (onde foste buscar esse cabelo, rapariga?...). Estivemos outra vez juntos, há dois meses, num dos piores momentos das nossas vidas. Coisas que nunca cairão no esquecimento.

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Pata que os pôs

Este país caiu nas mãos de alienados mentais, que, porquanto legitimamente eleitos (o funcionalismo vai ao sabor do poder político), nos transformam a todos em parvalhões que estavam a pedi-las no dia em que foram a votos. A intenção de baixar o limite de velocidade dentro das localidades para 30 km/h, de que o JN hoje dá conta, é apenas mais um sintoma da brigada dos bons costumes em que os que nos governam entenderam constituir-se. Na verdade, é apenas a costumeira técnica de arrumar de maneira fácil, penalizando os cidadãos, a própria incapacidade de resolver problemas. Tal e qual como no que respeita à lei antifumadores: no país em que os polícias verdadeiros quase têm de pagar para trabalhar e são cada vez menos, as milícias moralizadoras andam de vento em popa; agora, o director-geral da Saúde, um tipo com quem falei algumas vezes ao telefone, quando era subdirector, e só sabia dizer que se escreve "George" e não "Jorge", decidiu apelar aos extremosos comandos da ASAE para que persigam os restaurantes que optaram por servir fumadores. Não dizem "persigam", mas estão mesmo a traçar o mapa do tesouro, isto é, da caça à multa.

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Mais um que raramente se engana

Há um certo patriotismo anacrónico que me impacienta e que, nos dias de hoje, apenas faz sentido nas cabeças de bacanos como os amigos de Olivença. Portugal, admitamo-lo, não tem arcaboiço para existir fora da União Europeia, e a Europa sem integração transformar-se-á no barril de pólvora que sempre foi antes do processo desencadeado pelo Plano Marshall (sim, porque a UE é, em primeira análise, uma invenção geoestratégica dos americanos, cumprindo-lhe rejeitar esse estatuto de tampão, neste tempo em que vemos reacender o espírito da Guerra Fria). Portanto, nunca achei que este Tratado de Lisboa devesse ser referendado. Critico apenas - porque isso me choca - a desfaçatez de um primeiro-ministro que, ao invés de emendar a mão e reconhecer o erro populista da campanha eleitoral, anda por aí a dizer que tinha prometido referendar um tratado constitucional e que este (basicamente, a mesma treta) é uma coisa completamente diferente.

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Home of the brave

Saber quem será a "pessoa mais poderosa do mundo" - Hillary tem o mérito de impedir que se fale no "homem mais poderoso" - é algo que, efectivamente, interessa a toda a gente. Era bom que assim não fosse, mas a verdade é que a pessoa que ocupa a Casa Branca (e quem a rodeia, e o que ela representa) é determinante para o pulsar do globo. Daí que os blogues, que ultimamente pretendem assumir-se como vanguarda da opinião, em detrimento da Imprensa, não possam passar ao lado do processo de selecção de candidatos que está em curso. E a generalidade encara isto como os campeonatos de futebol estrangeiros: é-se adepto de uma equipa (o Chelsea, porque lá estava o Mourinho, o Manchester United, por causa do Cristiano Ronaldo) que, na verdade, nada nos diz (embora eu conheça um tipo - português, claro - que é fã do Liverpool, acima de todos os clubes cá da terra), e discutem-se as vicissitudes desportivas ao sabor dessa apetência clubística.

Por isso, os comentários que se lêem nos blogues portugueses valem pouco, enquanto análise, mas tornam-se divertidos. A esquerda tem dificuldades em rever-se no Partido Democrático, mas, bipolarização oblige, não tem alternativa. E, dentro dessa facção, torce com mais intensidade por Barack Obama, quanto mais não seja por ser o único que, desde a primeira hora, esteve sempre contra a disparatada invasão do Iraque. Será esse, provavelmente, um dos argumentos a apontar pelo Daniel Oliveira, que nos promete explicar por que simpatiza com o senador do Illinois. Mas a diversão, como habitualmente, é dada pela direita. É que, em vez de se preocuparem com o "clube" deles, o Partido Republicano, também só se preocupam com a escolha do candidato dos democratas. Veja-se o João Miranda, que passa ao lado de John McCain, Mitt Romney ou Mike Huckabee, preocupando-se em torcer pela senadora Clinton (que votou favoravelmente a guerra do Iraque e, até hoje, ainda não soube descalçar essa bota), na medida em que apouca Obama: "o candidato dos media" (porque os media têm as costas largas, todos sabemos).

Ora, a verdade é que as primárias de New Hampshire ou os "caucuses" do Iowa, por mais que estes sejam apontados como estados-padrão estão longe de ser determinantes. De resto, estamos a falar da escolha de delegados para as convenções partidárias e, aí, parece-me que Obama continua em vantagem. Quando passar a "super tuesday" já haverá algo de palpável a dizer, mas, para já, tudo é circunstancial e folclórico.

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Se...

...a Fátima Campos Ferreira e o ministro da Saúde fossem à Bairrada não apenas para comer leitão, talvez pudessem aprender que não há pessoas "da Anadia", mas sim de Anadia...

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Ah, Orlando, vem mesmo a propósito!...

Pois o meu camarada Orlando Castro (ele não gosta de "camarada", mas o termo não tem quaisquer conotações políticas, como muitos julgam, e é de há muito usado entre jornalistas, gente das letras, etc.) tem um blogue, o Alto Hama, que já foi alvo de uma acção como a que agora travou o Blasfémias. Na altura, ainda nos divertimos a "inventar" uma conspiração do "éme" (ele sabe o que é). Pega lá, Orlando, já te linquei! E como não estou para te oferecer música da tua terra, fico-me por uma aproximação, com Chico Buarque a cantar "Morena de Angola".

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Não os calarão!

Ora aqui vai um título a modos que vermelho (não consigo pôr o título a vermelho...), para também aqui denunciar a vil sindicância de que está a ser alvo o Blasfémias, que alguém denunciou como blogue spam (sabiam que Spam é uma marca de carne enlatada, nascida de "spiced ham"?...). É o maior atentado terrorista na blogosfera portuguesa, desde que um hacker atacou o Abrupto. Mas as diferenças são várias: enquanto este último é mais repositório de textos publicados na Imprensa, fotos dos leitores, opiniões dos leitores e poemas em Estrangeiro (fica bem, pôr a maiúscula em Estrangeiro, enquanto nome de uma língua viva), o Blasfémias é dos mais dinâmicos blogues portugueses; enquanto o outro aproveitou o vil ataque para um choradinho que nunca mais acabava, os blasfemos reagem com bom humor.

De resto, a denúncia não merece interpretações políticas, sociológicas ou antropológicas. Foi obra de um palerma qualquer, coisa que abunda nesta nossa praia lusitana.

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Luiz Pacheco (1925-2008)

Vejo agora a notícia da morte de Luiz Pacheco e decido reproduzir aqui um excerto de "O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor". É um trecho que o Manuel António Pina, que tem histórias bem mais engraçadas envolvendo o Pacheco (a ele cabe, ou não, contá-las), reproduz de cor, incluindo o nome completo dessa Deolinda da Costa Rodrigues, cuja virtude (?) foi salva por um arroz de cabidela.

«Regresso à caminheta e venho a saber depois que o lugar de Assento é estrada abaixo, para ao pé da igreja. Voltamos todos para Braga. Apontei o nome da miúda e o resto. Almoçarada em Gualtar com o Forte e o King-Kong, o motorista, que paga tudo e está simpatiquíssimo comigo e com o Mundo. Frango com arroz, à minhota, uma delícia. Vinho verde, à minhota, uma delícia. Como bundaradas porque adoro arroz de cabidela e vinho verde e minhotas: "Deolinda da Costa Rodrigues, 14 anos, no lugar de Assento, cá me ficas, mas este arroz marcha à frente!". »

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Neste blogue ainda se fuma *

«Que se goste de fumar não o entendo; porém, entendo perfeitamente que se fume.

«Fumo, sim senhor, porque considero esse prazer como um dos poucos que, na jornada da vida, estão ao meu alcance.

«O que fumo? Uns cigarros quaisquer, porque cigarro é um tubo de onde desencanto utopias...

«Por que fumo? Porque gosto, porque enfermo dessa doença de que posso muito bem morrer mas para a qual não procurarei nunca remédio.»

José de Almada Negreiros
Civilização, Porto, 9 de Janeiro de 1936
(imagens do programa televisivo Zip-Zip, 1969)



* apenas porque a sobranceria asséptica desta lei, que proíbe totalmente sem proibir totalmente e transforma os fumadores em marginais de vão de escada, quase me obriga a protestar de cigarro em punho, cumprindo-a e desprezando os copinhos de leite que, sórdidos, riem em surdina de quem vêem a fumar à porta dos restaurantes.

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Marmeleira by night

Ignoro como é a vida nocturna da Marmeleira. Mesmo a vida nocturna do Porto, onde nasci e vivo, guarda para mim muitos segredos, embora nunca tenha tido medo de andar pela rua ou de ir aqui ou acolá beber um copo, hoje com menos regularidade do que noutros tempos, porque assim acontece, não porque haja uma guerra civil nas ruas. Suponho que os nativos da Marmeleira, posta no mapa porque lá vive um "famoso", podem circular descansadinhos pela terra depois do sol-posto, admitindo que não o façam porque a ruralidade ou os "early morning blogs" obrigam a madrugar. Não me verão, todavia, a dissertar sobre o que não conheço e a dizer que na Marmeleira os melões são maiores do que os de Almeirim, quando talvez fosse mesmo mais adequado falar de marmelos. Falar de marmelos prolixos que, se contassem a historinha toda, talvez não tivessem a mesma aura de credibilidade assente em coisa nenhuma. Quem escreve que "No Porto, tudo o que pareça dar razão a Rui Rio é anátema para o Jornal de Notícias e para a redacção do Porto do Público" não deve ser pessoa de bem, e o melhor seria eu ficar por aí. Mas isso seria um soez ataque ad hominem, mera bojarda para o isolar como único estandarte de elevação numa pátria de boçais. Portanto, terei de me estender um pouco mais, questionando qual terá sido, afinal, o papel de Pacheco Pereira, desde a primeira hora, na estratégia de Rui Rio contra o dito "stato quo ante", direccionado para um alvo e evitando outro (do mundo do futebol falo, leia quem quiser). Porque esse "stato quo ante", promíscuo ou não, corresponde ao último tempo em que a cidade do Porto mexeu, antes de o actual gestor a mergulhar no marasmo. A vida política portuguesa, mesmo quando vista da Marmeleira, é feita de vinganças e desforras, de ódios e rancores. Cá se fazem, cá se pagam. E quando demoram a ser pagas, insiste-se, insiste-se até cair no ridículo. O que Pacheco Pereira nunca perceberá, do alto do sua postura elitista, é que, mais do que ser comentador descomprometido (sonhemos que o seja) está a desencadear ódios e a alimentar o regionalismo que tanto condena, tanto a norte como a sul. As claques de futebol, todas, são território propício à marginalidade. Em todo o lado. No Porto, em Lisboa, na Merdaleja ou na Marmeleira. E todas podem ter ligações perigosas, algumas em patamares ainda mais intocáveis do que o que aqui se verifica, protegidas sabe-se lá por quê ou por quem. Agora, dizer que a ligação de marginais a uma claque é o aspecto mais relevante, mais relevante do que a própria actividade criminosa, é algo que apenas o ódio justifica. E os que odeiam serenamente, os que urdem teias de vingança, são especialmente perigosos.

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O esférico rolando sobre a erva

"Aquela metragem quadrada devia ser uma zona interdita!..."

(o relator, ou narrador, ou lá como se diz, da TVI, convidando a uma intervenção do comentador, logo depois de o Boavista marcar ao Sporting)

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Tiro na água

Há muito que aprecio o Da Literatura e o modo como Eduardo Pitta, que lia noutros meios, se adaptou ao tempo e à forma dos blogues. Mas o tempo e a forma, vi agora, atraiçoaram o co-autor, João Paulo Sousa, que desenvolve contracrítica numa base irónica absolutamente errada: não faz a menor ideia do que, historicamente e de facto, é a Associação Comercial do Porto.

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Les envahissements - 2

Como se pode nascer para nada

e viver encurralado entre tudo




Segundo na linha de sucessão a D. Maria I, o infante João não nascera destinado ao trono, mas à ociosa vida de uma realeza que restabelecera a ordem cerceada por Pombal. Só que acabou por governar aos 25 anos, não pela natural lei da vida, mas pela loucura que da rainha se apossou. Os retratos mostram-no grotesco, acompanham-no adjectivos pouco edificantes – timorato, hesitante, medroso -, atribuem-se-lhe modos boçais. Afinal, com os franceses à vista, tomou a única opção possível para manter Portugal numa espécie de independência.

Senhor de um reino sem poder e encurralado entre as forças que se defrontavam na Europa, lançou-se, talvez transido de pavor, na maior operação alguma vez montada: a viagem da Corte para o Brasil, onde veio a implantar a capital do reino e, nove anos depois, a ser aclamado rei. Voltaria D. João VI à metrópole em 1821, novamente contrariado e prestes a ser despido de poderes pela Constituição vintista. Certo é que, se o príncipe regente não tivesse, como alguns ligeiramente interpretarão, fugido com o rabo entre as pernas, a realeza teria sido capturada por Junot, e o reino retalhado e integrado no império napoleónico.

Um acumular de circunstâncias desfavoráveis, enfim, venceu as proverbiais incertezas do príncipe regente. Quando se soube que Bonaparte ordenara a invasão de Portugal e a captura da família real, a opção pela ida para o Brasil, já equacionada como recurso de emergência diversas vezes desde a crise dinástica quinhentista (e reforçada ao longo do século XVIII, com a crescente importância da colónia), tornou-se inevitável. Em 1801, o conflito conhecido por Guerra das Laranjas foi um primeiro sinal da incapacidade de defesa lusa e de que o reino não sobreviveria sem recurso à aliança com Inglaterra, tivesse essa opção os custos que tivesse.

Jean-Andoche Junot, que em 1807 comandou a primeira invasão francesa, havia sido, dois anos antes, embaixador em Lisboa, com a missão de pressionar o regente para cumprir o estatuto de neutralidade, travando o acesso de navios ingleses. A pressão aliviou com o empenho do imperador nas campanhas da Europa central e da Rússia, mas com o Bloqueio Continental a vigorar, os franceses, já em 1807, intimaram Portugal a cumprir o que estava decretado.

D. João e os seus conselheiros viveram, então, na corda bamba. A aceitação do ultimato francês reunia mais adeptos, sempre numa tentativa de minimizar danos, mas as perspectivas de retaliação inglesa (em especial se Portugal prendesse súbditos britânicos e lhes arrestasse os bens) eram tremendas, sendo a ocupação da Madeira apenas um princípio. Foram tempos de loucura diplomática, com o regente – em permanente ansiedade – a tentar o equilíbrio entre dois gigantes que o acossavam. Embora a partida para o Brasil estivesse a ser preparada, D. João não apreciava a ideia, e só a terá realmente assimilado sob pressão do embaixador inglês, Lord Strangford, que forçou ao fim da ambiguidade. Quando a invasão se consumou, a soberania portuguesa nada significava para Napoleão. Já não estava em causa o Bloqueio Continental, mas a tomada do reino e a execução do Tratado de Fointanbleu, que determinava a partilha dos despojos territoriais.

Baseada não só na necessidade pragmática, mas na noção teórica de que um grande império nasceria no Brasil, a fuga foi atempadamente calculada. Após a decisão final, demorou apenas três dias a concretizar. Mas não foi preparada na perfeição, e foram atabalhoados os momentos que antecederam a partida, a 29 de Novembro de 1807, para uma viagem que alteraria decisivamente o rumo de Portugal.

Jornal de Notícias, 27 de Novembro de 2007

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Virar o bico ao prego

É divertido verificar como um defensor fiel da actual Administração americana retrata o que deverá ser a rejeição daquilo que George W. Bush representa: "Parece que andam a escolher nos EUA quem é que a esquerda portuguesa vai odiar nos próximos 8 anos.".

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Caucuses

Barack Obama e Mike Huckabee venceram os "caucuses" do Iowa, arranque do longo processo de selecção dos candidatos à presidência dos Estados Unidos, e anda já tudo a ditar sentenças extemporâneas. Em especial, quanto à alegada surpresa que constitui o êxito parcial de Obama, em contraste com o revés de Hillary Clinton (terceira, atrás de John Edwards). Se o candidato afro-americano vencer as primárias de New Hampshire, aí já algo mais pode ser dito, mas a verdade é que, ontem, triunfou num estado da região onde é mais influente, o Midwest.

[enfim, vamo-nos divertindo com os comentadores, como aquele que há pouco, na RTP-N, destacava o apoio de "Ópera Whitney" (sic) a Obama, era incapaz de distinguir "caucuses" de primárias e pronunciava New Hampshire com o i bem aberto (hampsháier), erro comum que consistirá na transferência para as palavras compostas do radical "shire", que, assim isoladamente, se lê mesmo "sháier", enquanto Yorkshire, Lancashire, Cheshire ou Hampshire mantêm o i fechado, lendo-se "shi" exactamente como em sushi... excepto na Escócia, onde fazer rimar Hampshire com fire está certo... penso eu de que]

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Safa!!!...

Marco António e Vitalino Canas juntos e ao vivo, na televisão. Sancho, vamos à rua!

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Affabre Concinui

Não percebo nada disto, mas parece-me que estes gajos, seis polacos que formam um grupo vocal espantoso, porque fazem milagres "a cappella", têm escapado aos programadores culturais portugueses. Mesmo para quem não souber peva de Polaco, dá para ir ao site deles e, seguindo o link mp3, perceber mais ou menos como é o reportório dos Affabre Concinui (harmonia perfeita ou afinação perfeita, o meu Latim é tão bom como o meu Polaco...) e ficar com uma ideia de como um espectáculo deles deverá ser divertido.

O exercício que proponho - tal como me foi proposto - é simples e rápido. Duas faces de Bach, devendo ouvir-se a primeira (a conhecida suite para orquestra "Badinerie") e só depois desfrutar da segunda. Três minutitos chegam.

Ouvir primeiro



Ouvir depois



Aplaudir ou assobiar apenas no fim.

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Vitalino

Ser porta-voz implica falar mais vezes, algo que, no que à nossa peculiar classe política respeita, é directamente proporcional à quantidade de disparates. Vitalino Canas, porta-voz do PS, falou há pouco na RTP-N, pelo telefone, comentando a entrevista dada por Eduardo Ferro Rodrigues à "Visão". Ora, já o comentário se estendia para a mais primária demagogia, com a explicação de que todo o dinheiro resultante dos sacrifícios pedidos aos portugueses vai direitinho para os mais desfavorecidos, quando o porta-voz esclareceu a base em que falava: "Ainda não li a entrevista na globalidade... só conheço as declarações que têm vindo a ser reproduzidas na comunicação social".

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Mas a que propósito...

...se lembram os meus coleguinhas da televisão (não só, mas sobretudo eles) de chamar "sinalética" aos sinais?...

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Baixando as calcinhas ortográficas

Comecei há bocado a ler "Budapeste", de Chico Buarque (não é novidade, bem sei, mas nem sequer pretendo falar do livro pelo livro). É que está agora a Edite Estrela na televisão a defender a porra do acordo ortográfico, até na argumentação dos apologistas um sintoma da congénita subserviência dos portugueses. Ora, se eu leio o que os brasileiros escrevem, se entendo as expressões idiomáticas (ou tento aprendê-las, se as não conhecer), se reconheço e respeito as peculiaridades da ortografia, se até me divirto a ler mentalmente com sotaque brasileiro, por que carga de água não há-de funcionar de igual modo no sentido inverso? É evidente que a língua evolui e que, periodicamente, as mudanças têm de ser normalizadas. Porém, ter de escrever "umidade" e outras coisas aviltantes do género, só porque os brasileiros são mais e há que acabar com os problemas com que se deparam as instituições internacionais que têm de verter documentação para Português, é uma renúncia à nossa identidade. Hoje escreve-se "mãe" em vez de "mãi" e "farmácia" em vez de "pharmacia", mas porque evoluímos nesse sentido. Não por uma necessidade de sobreviver na submissão. Que eu saiba, os brasileiros ainda gostam de dizer que falam Português - e falam-no. Não temos de temer que, por sermos dez milhõezecos, haja uma secessão linguística que nos tire o estatuto de potência imperial da fala e da escrita.

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A verdade é a primeira baixa da guerra

Desde que há cento e duzentos anos vi "Dressed to kill", Brian De Palma permanece no meu quadro de honra de cineastas. Não interessará porquê, visto eu ser um cinéfilo de terceira apanha, o que me salva, pois nem terei de usar os expedientes discursivos comuns à crítica de pacotilha (não é o mesmo que a Crítica), elaborando um texto em que lugares-comuns disfarçam a ausência de real erudição. Gosto. Pronto. E este "Redacted" ("Censurado", na versão portuguesa) nem é um filme típico de De Palma, como o foi o precedente "The Black Dahlia". Mas é brutal, incisivo, certeiro. Os simples (e assim são a maioria dos compatriotas do cineasta) poderão anatematizar obra e autor, com acusações de antiamericanismo (palavra sem o peso de imbecilidade que há em "un-american"), como sempre o fizeram, por exemplo, com o documentarista Michael Moore. E os obedientes filo-americanos, espécie entre nós tão revelada pelos blogues, vão logo atrás. Incorrem, porém, num erro basilar: o filme não é contra a América (ou contra a alienação mental a que George W. Bush dá rosto), mas, essencialmente, sobre o que a guerra faz das pessoas, sei lá se alterando-as ou revelando-as.

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