A criação do mundo


2007


Fim de uma pequena alegria numa enorme dor sem fim.

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1967

Ontem, a RTP2 transmitiu um magnífico programa com Chico Buarque de Holanda, um génio da música brasileira e da língua portuguesa. Vai daí, enquanto procurava no YouTube algumas das coisas que vi na TV, dei com esta pérola do ano em que nasci.



Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...

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Les envahissements - 1

Tempos de sangue e de fogo

que forjaram um novo Portugal

Não parou a água de correr sob as pontes desde aquele 19 de Novembro, dois séculos exactos hoje cumpridos, em que as tropas do general Jean-Andoche Junot, futuro duque de Abrantes de cognome “A Tempestade”, cruzaram a fronteira para terras lusas. Terá começado a desenhar-se aí o Portugal que hoje somos, tombado, reerguido ou reconstruído entre guerras, revoluções e impérios perdidos. Da chegada dos franceses nasceu a orfandade do reino, nesta cresceram os ideais do Liberalismo que tardaria em triunfar de facto. O tempo da Guerra Peninsular, aqui marcado por três distintas invasões, foi feito de elementos paradoxais – afrancesados e resistentes; liberais embrionários e vetustas mentalidades de Antigo Regime... – que entrechocariam longamente após a queda definitiva de Napoleão Bonaparte.

Nada em História pode resumir-se a confrontos entre bons e maus, mesmo que a isso induza a iconografia com que nos identificamos. O leão esmagou a águia e Portugal ficou salvo? Ou terá o felídeo britânico significado uma outra forma de opressão que nos esmagou irremediavelmente? Talvez a realidade, se a ela nos atrevermos a almejar, mostre o fado de um país que, mesmo nos momentos de esplendor, sempre alguma fraqueza sentiu entre os poderosos que se erguiam.

Nesse dia diluviano de 1807, Junot cruzou a fronteira beirã, decidido a conduzir um exército faminto à capital do reino. A Lisboa chegou ao cabo de 11 dias, não a tempo de impedir a partida da Corte para o Brasil, inaudita e precipitada (embora prevista e planeada) travessia do Atlântico encetada um dia antes. Mais do que a crueldade das tropas, do que as pilhagens e os desastres, mais que o fragor das batalhas ou do que a sanha do vulgo espezinhado, terá sido essa deslocalização da capital o facto, decorrente da guerra, que mais perenes e radicais mudanças deixou.

A decisão do príncipe regente D. João, posteriormente sexto monarca do nome e sétimo da casa de Bragança, é vista por muitos como um gesto de cobardia, triste corolário da proverbial indecisão do filho de D. Maria I (entretanto endoidecida) que não nascera para governar. Mas não havia novidade na indecisão posicional deste nosso país quando necessário se tornava tomar partido entre franceses e ingleses, assim sucedera com D. Fernando, por exemplo, aquando da medieva Guerra dos Cem Anos. A ida para o Brasil, talvez a única forma de impedir a aniquilação disto que somos, foi uma inexoravelmente submissa forma de aliança com os ingleses, que, mais do que garantir a defesa contra o invasor – Arthur Wellesley, depois duque de Wellington, é figura incontornável –, assumiram a gestão deste rectângulo e invadiram comercialmente o Brasil, abrindo caminho para a independência da colónia, em 1822, que cortou pela raiz o que até então havia sido a realidade económica portuguesa.

Aos olhos dos franceses de hoje, Portugal não passa de uma nota de rodapé, ou pouco mais, nos capítulos consagrados às guerras hispânicas. Por cá, todavia, as invasões comandadas por Junot, Soult (1809) e Masséna (1810) deixaram marcas que perduram. Na linguagem (“Ir para o Maneta” é expressão comum, inspirada no sangrento general Louis-Henry Loison), nos rituais (há ainda quem acenda velas no baixo-relevo alusivo ao desastre da Ponte das Barcas, na Ribeira portuense), nas histórias de família (aqui e ali, sobretudo em meios rurais, há casas em que se mostram vestígios da passagem dos invasores), no património (pilhado, salvo ou erguido em evocação desses anos)... Em tudo, até na forma diferente como se dizem as horas em pontos distintos do país.

Jornal de Notícias, 19 de Novembro de 2007

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Les envahissements

Tenho estado, desde 19 de Novembro, a publicar, no JN, uma página semanal sobre a Guerra Peninsular, isto é, assinalando o segundo centenário das invasões francesas. Agora, já com a poeira a assentar sobre o papel de jornal, vou reproduzir aqui os textos principais, com idêntica regularidade. Tento que a evocação do passado seja um mote de reflexão sobre o presente (com as evidentes condicionantes decorrentes da natureza de um jornal diário), porque só isso, no fundo, dá verdadeiro sentido ao estudo da História (conhecer o passado só por conhecer é uma espécie de coleccionismo). A começar ainda hoje, ou talvez amanhã...

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Onde está o Wally? (II)

Na extrema direita, ele que até era de esquerda, José dos Santos Leal, grande professor. Na extrema esquerda, a Laurinha, funcionária da escola do Covelo que nos servia o leitinho, para ela guardando o tintol que tanto estimava. No meio, o maralhal. Algures, no maralhal, moi-même, com a esbelta fisionomia de 1976, assim como quem já um dia teve nove aninhos.

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Democracia?...

Benazir Bhutto (1953-2007)

Três dias de luto foram decretados por Pervez Musharraf, esse insigne democrata, após o assassínio de Benazir Bhutto. O Paquistão, lá longe, é dos países que mais assustam o mundo, porque é uma potência nuclear que a qualquer momento pode cair nas mãos dos extremistas islâmicos. Assim sendo, Musharraf, que tem sido aliado incómodo dos americanos na "guerra contra o terror", está à vontade para retomar o estado de emergência e, até, mandar às malvas as eleições que, ao que tudo indica, já tinha controlado devidamente. E o Ocidente baixará as orelhas, porque nada disto tem a ver com democracia.

Carachi, ontem hoje (ai, este hábito de escrever no jornal, chamando ontem a hoje!...)

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Lixo

Pela honra que a minha profissão possa trazer-me, jamais poderei aceitar a equiparação do site da Câmara Municipal do Porto a órgão de comunicação social. A não ser que o coloque na linha das publicações que me entopem a caixa do correio, noticiando saldos, promoções ou reduções. Porque, realmente, a página oficial desta cidade mais não é do que propaganda pimba. A cidade está cada vez mais suja - a recolha do lixo é deficiente, as ruas são varridas quando calha e mal (porque por poucos), as papeleiras estão sempre cheias, os sacos-cão não são repostos... -, mas há sempre a possibilidade de culpar os trabalhadores, que se recusam a cooperar num mágico plano de reestruturação operacional. A febre liberalizadora e privatizadora é capaz de justificar uma postura que, porém, pode resumir-se numa outra palavra: javardice.

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Faca e alguidar

Está a passar ciclicamente, na SIC-Notícias, a curta história do pugilista sul-coreano que entrou em coma no final de um combate e, tanto quanto se sabe, tem a vida em perigo. O nojento da história - digo-o eu, que sou um dos maus - é a inexistência da história. Um desportista que ninguém conhece nem quer conhecer entra, assim, no alinhamento dos noticiários, não pela invulgaridade do sucesso mas pela sordidez que leva as pessoas a gostar de ver alguém entrando em coma, associada ao despudor de dar ao povo o que o povo quer ver, com intuitos mais comerciais do que jornalísticos.

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Creio que qualquer português que não fique fechado na paróquia já quis saber, nalguma ocasião, que diabo de ritmo de vida têm os espanhóis, que, aparentemente, descobriram que é possível desenvolver um país estando permanentemente a dormir, a comer ou a beber. A visão pecará por exagerada, admito, mas que é verdade que os gajos estão sempre alegremente nos bares ao fim da tarde, lá isso é; que enchem as ruas até às tantas, lá isso é; que não há lojas abertas manhã cedo, lá isso é; que têm petiscos magníficos, lá isso é. Um dia, pus o problema dos horários em Espanha ao Vasco Lourinho - quem não se lembra dele?, dos maiores reaças que já conheci, mas um tipo simpático -, cuja resposta foi desconcertante: "Vivo aqui há trinta anos e ainda não compreendi".

Depois, lá esclareceu qualquer coisa: "Numa loja, a maior ambição do tipo que tem a chave, para abrir a porta de manhã, é deixar de ser ele a abrir a porta".

Mas o que mais me interessa, agora, são as ruas cheias de gente. Aí, o antigo correspondente da RTP falou nas inevitáveis diferenças culturais entre Madrid e Barcelona, lembrando que os da Catalunha têm o hábito de receber em casa, algo bem mais raro entre os da capital. Ora, acabei de ler um texto do meu conterrâneo Manuel Serrão, no blogue Bússola, em que essa diferença é decalcada na dualidade Porto-Lisboa. Se, por um lado, me parece bem, o certo é que não gosto dessas verdades definitivas, porque das coisas que mais me entristecem no Porto é o deserto em que que a cidade se transforma quando inactiva. Quando os espanhóis (e não são só os de Madrid) saem do trabalho, juntam-se para uns copos e umas tapas, conversam alegremente, circulam descontraidamente. Por cá (e em Lisboa é a mesma coisa), vemos a multidão carrancuda em filas para os transportes que as levam aos subúrbios. Enquanto os espanhóis têm bares aos pontapés, nós temos o "pão quente" que fecha às sete, o café que adormece se não estiver a dar a bola, o restaurante que só serve até às 22, quando não se governa exclusivamente com almoços servidos à classe trabalhadora.

Os de Barcelona recebem em casa, os do Porto recebem. Os de Madrid não recebem? E os de Lisboa? Não sei se se passa o mesmo nas duas capitais, mas, se assim é, a minha explicação é outra. Embora Lisboa seja a cidade mais cantada, ilusão que resulta da forma quase absoluta como domina o universo mediático português, é, enquanto conceito algo muito mais difuso do que o Porto. Tem menos alma. Porque a convergência permanente de pessoas que ali vão em busca de oportunidades (o típico português "adaptável", que logo se torna "alfacinha de gema") fazem com que a identidade lisboeta seja uma miragem, fado enlatado que apenas serve para as promoções turísticas do ministro Manuel Pinho. Assim, a alma de Lisboa é algo que não se percebe bem, é um vazio que os de lá disfarçam com a máscara do cosmopolitismo.

Só que nada disso chega para demonizar os encontros em restaurantes ou o convívio libertador ao fim da tarde. É isso que falta ao Porto. Toda a gente, arranjada, na rua, a celebrar a vida (ou a suportar a vida). Pelo menos, quando não chove.

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Autopsicoterapia

A cabeça, meus senhores, usem a cabeça!, gritaria eu, debruçado da janela. E os complacentes trolhas, que martelam incessantemente desde as oito e meia, ignorando que me deitei às quatro, pousariam em silêncio a ferramenta nos andaimes, descendo com a suavidade do algodão, atravessando a rua em fila indiana e, depois de alinhados junto à escola em frente, esbodegando as cornaduras numa convicta série de cabeçadas contra o muro.

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SMS

Este ano, as mensagens impessoais de Natal incomodaram-me ainda mais do que o habitual. Mas não deviam, pelo menos, surpreender. Esse esquema alucinante que a tecnologia proporciona mais não é do que o fiel retrato de uma época do ano em que, pelos valores que a Igreja lhes inculcou ao longo dos tempos, as pessoas se fecham nos seus herméticos e pouco permeáveis clãs, cingindo a fraternidade universal ao uso mecânico das listas de contactos do telemóvel e do correio electrónico.

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Da vida do Porto

«Houve uma época em que o Porto notavelmente se distinguiu pela intensidade da sua vida tão fecunda e tão laboriosa. Serenadas as paixões politicas que agitaram profundamente o paiz e desvanecidos os receios de novos tumultos que comprometessem a paz, tão precisa ao progresso e ao desenvolvimento das sociedades, o Porto, depondo a espingarda com que heroicamente se batera no cêrco e na patuleia, reentrou na sua vida de trabalho, canceirosa e diligente. Mourejou e divertiu-se. De dia, ao balcão ou na oficina, manejando o tear ou estendendo o covado, grangeava o seu pão e o dos filhos na ancia cubiçosa e sofrega que foi sempre a grande carateristica do mercador tripeiro. A' noite, comida a ceia e resado o Terço, o excelente burguez divertia-se o melhor que podia nas suas sociedades particulares, nas suas Filarmonicas, nos seus teatrinhos ingenuos, até á hora pacata do dôce e sereno sono reparador. A vida portuense ha meio seculo era realmente pitoresca, e muito mais curiosa e interessante do que a de hoje, sob todos os pontos de vista lamentabilissima na sua chata e sorna imbecilidade.»

Pela sabedora e generosa mão do Germano Silva me chegou este livrinho, útil para escritos que tenho de fazer sobre determinado assunto, mas fico pasmado logo com o primeiro parágrafo do que este Firmino Pereira, denodado jornalista portuense, deu à estampa em 1914. Pasmado, porque ele, visionário, encontrou com quase cem anos de antecedência a descrição desta cidade em que alguns nos mergulharam (talvez a maioria dos eleitores, enfim...): lamentabilíssima.

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Another time, another life

Foto de MLC

Como nós sabíamos sorrir, minha querida!

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Slow food

Não perceber a diferença entre uma “punheta de bacalhau” e a salada de bacalhau d’O Paparico é, perdoem-me a analogia, nada menos do que entender a masturbação como quintessência da sexualidade. O bicho não é desfiado, antes servido em mui generosas lascas, demolhadas com rigor alquímico e perfumadas na pureza de um azeite trasmontano destinado aos deuses, com o necessário e ponderado toque de cebola que só nos faz chorar por mais. Será na etérea simplicidade dessa entrada – ingredientes de qualidade bastam –, apenas, que podemos ler a origem nipónica da cozinheira e anfitriã, Yuko, capaz de transformar em sashimi ao gosto português o fiel amigo encardido pela salga e pela seca. Na sala, o marido, senhor Cardoso, encarna o rigor do mestre de cerimónias. O João Luiz, que há dias jantava à minha frente, vê aquilo com os olhos de homem do teatro, talvez certeiros: quase invisível na discrição, o dono mexe os cordelinhos, gerindo o tempo com distanciamento perfeccionista, de um espectáculo em que nós, que julgamos ser público, somos, afinal, os actores. Talvez sejamos, mas é nos adereços que está todo o fascínio desse demorado ritual gastronómico, não nos acessórios rústicos espalhados pelas duas salas, mas na comida. Portuguesa, simples, divina. E lenta.

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Taina ordenada

Entra de novo em cena a comissão pró-ordem dos jornalistas, que usa as vestes de "MIL - Movimento Informação é Liberdade", desta feita para debater a auto-regulação com os joelhos debaixo da mesa. O repasto, num qualquer tasco lisboeta ainda por anunciar (dependerá do número de convivas, suponho), já mobilizou oito pessoas oito, duas das quais, fora que estão das listas da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, nem sequer cumprem o mais básico preceito legal para o exercício da profissão.

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Gagueja Pereira

Tinha para mim que Pacheco Pereira era um tipo inteligente, mas vejo que me enganei, pois não passa de um espertalhão das dúzias com dinheiro para comprar toneladas de livros. A desonestidade intelectual, como me dizia ao jantar um amigo, é incompatível com a inteligência, e o nosso saltimbanco do populismo erudito falha aí em toda a linha. Um texto que escreveu para a última edição da "Sábado" é, com efeito, revelador de um carácter que continua a mobilizar seguidores, o que apenas se compreende por este ser um país onde a iliteracia e a imbecilidade imperam. Pim. Ora, se a atitude contra os Superdragões - grupo marginal que pouco me diz - é compreendida por toda a gente, pois "apertaram-no", certo dia, à porta do hotel portuense em que estava hospedado, o mesmo não pode dizer-se, como apontei um destes dias, da animosidade que cultiva em relação ao "Jornal de Notícias". Mas, como essa atitude hostil é notória, não surpreende a comparação que faz entre as formas como JN e DN, dois jornais do mesmo grupo, um sedeado no Porto, outro em Lisboa, noticiaram a captura e a ida a juízo de instrução de suspeitos da noite portuense. Diz que o que está bem é publicar "biografias" dos suspeitos, coisa que o JN não fez e, na opinião do douto analista, deveria ter feito. E ainda bem que o JN não o fez. Só a cegueira selectiva de Pacheco Pereira - não quero acreditar que estejamos perante um caso de menoridade de raciocínio - pode permitir que se veja como sendo normal a identificação pormenorizada de suspeitos que ainda nem arguidos eram. Gente sem culpa formada. Se assim é em Guantánamo, por que não deverá sê-lo na nossa paróquia? Como dizia a outra, "quem tem ética passa fome", e o senhor Pacheco não me parece subnutrido.

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Um (entre tantos) dilema liberal

Parece que a nova moda entre os muçulmanos, ou determinados sectores islâmicos (salvaguardemos o que houver para salvaguardar), é implicar com os emblemas de clubes de futebol ocidentais. Se o diabo foge da cruz, eles odeiam-na. Mas a verdade é que a indignação a ocidente seria bem maior se alguém usasse suásticas, e estará sempre por demonstrar se os nazis eram mais horríveis do que os cruzados, um misto de carniceiros, saqueadores e fanáticos religiosos. Enfim, ultrapassar os rancores do passado é um sinal de maioridade evolutiva que a humanidade ainda não alcançou. Porém, o curioso da questão não está na renúncia aos nossos valores. Está na circunstância de os mais revoltados - os defensores da liberdade total - não quererem ver que, sem a obsessão do mercado global, a gente mandava os descontentes à merda e deixava-os a jogar futebol no deserto. Porém, os interesses geoestratégicos falam mais alto do que a moral ou do que o orgulho, e o mercado, esse supremo valor do liberalismo económico, é que define os interesses geoestratégicos. Um mercado que se quer global mas de modo algum é livre, embora de liberdade seja sempre travestido. Resumindo, somos agora governados pela ideia de que eles têm de levar connosco, mas nós não temos de os aturar. Não temos, certamente, mas não somos capazes de viver sem eles.

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Pequenas compensações

Desde ontem e até sei lá quando, talvez daqui a dois meses, vivo nas trevas. A explicação é fácil e não envolve negociatas com o mafarrico: andam a arranjar a fachada do meu prédio e tenho andaimes em todas as janelas, vejo trolhas a passarinhar de um lado para o outro, ouço com clareza as eruditas conversas com que aliviam o peso da labuta; ora, como não os quero a espreitar cá para dentro, mantenho as persianas fechadas e afasto de mim a luz do sol. Mas nem tudo é negro. Este ano, por causa das obras, o vizinho de cima não pôde obrigar-me a ver, da minha sala, os pés do Pai Natal; vi da rua, um destes dias, que o pendurou dentro de casa.

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O Sabichão

Quando alguém quer ser a consciência moral de alguma coisa, nada é mais natural do que, aqui e ali, ver a pena fugir-lhe para a atoarda, fazendo erguer, evidentemente, vozes críticas. Porém, como é o impoluto farol dos costumes, basta-lhe dizer que está a ser alvo de ataques ad hominem para ficar de novo coberto de razão e ao abrigo de todos os que não concordem com ele. Está acima de todas as polémicas, porque determina regras do jogo que o favorecem. Ou seja, envereda por essa saloia ideia de que, apesar de o pensarmos, não podemos gritar que alguém que só diz parvoíces é parvo, porque perdemos a razão, devendo, portanto, fazer a desmontagem intelectual da parvoíce que, todavia, merece ser considerada enquanto exercício de livre pensamento e de livre expressão.
José Pacheco Pereira - que já anda a ocupar demasiado espaço neste blogue - é especialista nessa matéria, a da intocável construção intelectual da banalidade, mas é também paradigma daquilo que, na minha modesta opinião, é o mal que mais tem destruído a cidade do Porto: a desistência, no caso disfarçada com a desfaçatez que sempre envolve o exercício da cidadania à distância.
Comecemos pela desistência. Causada pelo individualismo e pela busca de oportunidades no curto prazo, sejam profissionais ou mais prosaicas, como a busca de habitação própria, leva as pessoas a sair, para a capital ou para os subúrbios. Quem quer uma carreira vai para Lisboa, quem quer uma vizinhança asséptica de classe média vai para a Maia, e por aí fora. O Porto, ainda por cima a atravessar o tempo plebeu de uma governação nada ambiciosa, vai definhando rumo ao triste destino de ruína humana. O mediático político/cronista/comentador/blogger, homem do Porto, filho de uma família vetusta que criou raízes e deixou marca na cidade, existe fora do Porto, onde regressa ocasionalmente por razões familiares ou outras, mas entende, de vez em quando, ser participante activo na discussão da cidade. Com toda a legitimidade, entenda-se, mas com a fragilidade de quem não associa a reflexão à acção. Mais difícil e legítimo, evidentemente, é ficar, pensar e participar.
Daí que a crónica do biógrafo de Cunhal, hoje dada à estampa pelo "Público" e reproduzida, com apêndices de enquadramento, no blogue "Abrupto", pouco mais não seja do que um exercício da demagogia típica dos referidos faróis moralizadores. Pacheco Pereira parece ter um relacionamento difícil com a cidade que diz amar, e nisso enquadrar-se-á a forma como lida com o "Jornal de Notícias". Baseio-me na experiência própria: das três vezes em que, profissionalmente, lhe pedi depoimentos sobre temas que estava a tratar jornalisticamente, só numa ocasião respondeu (não à solicitação mas à mensagem de email), sem o mínimo de cortesia. Das outras, não respondeu, algo que, especulando, poderei atribuir ao excesso de chá, tão pernicioso como a falta dele. Porque, evidentemente, tão eminente figura nem saberá da minha existência, pelo que seria presunção minha associar essas negas às alfinetadas que lhe dei na blogosfera, das quais, de cor, posso citar a circunstância de lhe ter chamado " saltimbanco do populismo erudito". Seria muito triste ver tão honrado filho da terra desprezar uma instituição com 120 anos, como é o JN, por causa dos arrufos dos blogues. Por outro lado, se algum outro motivo faz com que o senhor não queira falar ao JN, é uma grave falta de frontalidade não o assumir com clareza.
Como o relacionamento é desse tipo, não é de admirar que Pacheco Pereira faça comparações abusivas, associando um texto de um actual director adjunto do JN à situação vivida há 17 anos por alguém que já faleceu, pretendendo dar a imagem de que os jornais e os jornalistas portuenses vivem num estado de subserviência permanente ao F. C. Porto e a Jorge Nuno Pinto da Costa. Tal não causa espanto, repito, mas nem por isso deixa de ser repugnante. Ver alguém, com tanta firmeza, a pensar o Porto dos últimos 20 anos, o Porto onde, grosso modo, não viveu, é, pelo menos, enfastiante.

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Time

Vida de blogger é dura, mas a verdade é que vida de blogger é um part-time para ir levando. Por tudo e mais alguma coisa, a blogaria está em plano secundário. Daí, pouco me importa que este novo cardanho onde escrevo tenha, até agora, um absurdo recorde de 24 visitas no mesmo dia. E ainda se queixa o Pacheco de só ter quatro mil e sei lá quê blogues que o lincam. Eu tenho um, a Leonor, professora-blogueira de Mafra cujo estaminé visito regularmente. Dou-lhe um prémio, este "Time" de David Bowie, no "1980 Floor Show" (ler em estrangeiro, para soar parecido com o orwelliano - e bowístico, pois - "Nineteen eighty four"), programa televisivo gravado, em Outubro de 1973, no Marquee Club, em Londres. Esta foi, efectivamente, a última aparição de Ziggy Stardust. Porque o que mais me impede de blogar é, justamente, a falta de time. Agora mesmo, tenho de fazer "publicar mensagem" rapidamente e pôr-me a andar, que está aqui o Sancho a pedir para ir à rua e não é de bom tom contrariar um cão de bexiga cheia...


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Onde está o Wally?


Chega-se aos 40 anos para pensar que o tipo de 30 que nos mostra a foto era um fedelho, esquecendo já os tempos em que, com 20, se via nos 30 o início do fim. Haja paciência, até para as incoerências. Então não é que aquele magricela sem cabelos brancos que se vissem usava suspensórios, coisa que este barrigudo que escreve não faz?
( a foto tem dez anos e alguns meses; foi tirada - sei lá por quem - num almoço de aniversário do JN, no Casino de Espinho, num tempo em que a dita "família JN" era ainda este mar de gente)

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Vanitas

Se os blogues democratizaram, de algum modo, o acesso ao público de muita gente que permaneceria de outro modo na penumbra dos papéis escritos para a gaveta, é igualmente certo que são usados para potenciar estratégias pessoais de gente que já possui notoriedade. José Pacheco Pereira é o paradigma dessa segunda situação, o que não é de espantar nem de condenar, especialista que é na utilização do espaço mediático a seu favor. Todavia, peca pela vaidade: o auto-elogio encapotado por uma máscara de desprendimento, o desprezo pelos que o criticam na medida simétrica à simpatia pelos que o bajulam... Enfim, tudo isso pode resumir-se na forma olímpica como ignorou a brilhante desmontagem, feita por Paulo Querido, de mais um laudatório post em causa própria, sobre as audiências do Abrupto. A coluna de links ali ao lado serve, em parte, para que eu mesmo vá navegando por alguns blogues, para não estar a entupir os favoritos. Tenho de trabalhar nela, há ligações desactualizadas e revisões a fazer. Começo já: o Abrupto sai dali, com a certeza de que continuarei a passar por lá (sempre surge, por vezes, alguma coisa interessante) e de que a a perda da residual contribuição deste canto não fará, de modo algum, tremer os alicerces de tão eruditamente popular instituição virtual.

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As costas largas da noite

As notícias devem conter factos, as investigações devem basear-se em factos, também dos factos vivem as declarações oficiais. Mas - que diabo! - os blogues podem ser feitos de impressões. Assim, pergunto-me em que raio de planeta vive toda a gente que resume os crimes recentes a problemas com a noite do Porto. Pensarão, porventura, ser o negócio da noite e da segurança tão desenvolvido, em matéria de execuções sumárias e certeiras, como actividades criminais de outra dimensão, seja no alcance ou nos lucros? E julgarão, quiçá, ser muito provável que este seja um problema exclusivamente português? Nada, na forma dos crimes, remete para "ajustes de contas" da noite, mas só da noite se fala, porque, por acaso, é gente da noite. Lembro-me de alguns, em início de carreira, que só queriam um emprego que lhes permitisse dar arraiais de pancadaria a quem se lhes atravessasse no caminho. Batiam de forma obscena, quase sempre sem razão. Terão, entretanto, dado o salto para outros voos, certamente como subalternos abastados. Evidentemente que a Polícia se aperceberá destas coisas, mais evidente ainda é não terem de andar a fazer propaganda do que investigam. É fácil dizer que devem actuar, mas todos vemos, muitos sem querer ver, que de há bastantes anos a esta parte se vem registando um gritante desinvestimento na segurança pública. O que me irrita, porém, é o aproveitamento dos politiqueiros de vão de escada, protagonistas neste país medíocre, que vêem no crime organizado - desta Europa sem fronteiras e deste mundo tão pequeno - uma consequência da governação paroquial (assim são hoje os governos dos países, num planeta em que também o crime é global).

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Fontes de vida

Foto de POS

Persiste a chuva por fora, por dentro, na pele, nas entranhas. No corpo e na alma. Não há forma, nestes dias, de associar a chuva a um cantaroleiro Gene Kelly. Apenas o choro compulsivo dos anjos ou o cinismo de demónios cuspideiros. Hoje foi Dia da Mãe, à moda antiga, isto é, como sucedia antes de o marketing, na sua capacidade de vender ambos os progenitores, rasgando sorrisos aos clientes, ter transferido a homenagem para Maio. Agora, todos os dias, horas e minutos são da Mãe, pouco importa o que mostra o calendário, mas aproveito, com esta imagem de mãe e filha, fixada em Setembro de 2006, para honrar todas as que trouxeram alguém a este mundo desconcertante.

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Da simplicidade do espírito

Pergunta-se, no inquérito em linha do sítio oficial da Câmara Municipal do Porto, se "chamar energúmeno é um direito consagrado pela liberdade de imprensa". Evidentemente que é. Além da nobreza que há em usar vocábulos de raiz etimológica grega, o termo adequa-se, no sentido figurado (não andamos para aqui a falar em possessões demoníacas), a pessoas exaltadas, desnorteadas, fanáticas. Tão desnorteadas e fanáticas que ainda andam às voltas com esta história, com a qual se cobrem de ridículo por não terem sabido encará-la com inteligência.

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Cá estamos


A criação do mundo é a sequência da Fonte das Virtudes que foi a sequência do Cerco do Porto. Todos são, desde esse bloguisticamente prolífico Verão de 2003, reflexos condicionados do que sou. Condicionados pela vontade, pela disposição, pelas limitações. Mas sempre condicionados, à uma porque ninguém abre todas as portas, às duas por o talento ser modesto, às três porque a vida não está na Internet. Pouco tenho a dizer, como nota introdutória, além de que o espírito será sensivelmente idêntico, mudando o blogue da forma como eu mesmo mudo. Ou seja, sem saber como mudarei, como mudamos todos, não poderei dizer o que aqui muda. Apenas o que fica e é o que penso dos blogues: espontâneo, inconstante, pessoal mas público. E sempre assinado.

Bem-vindos.

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Recomeçar

Acreditávamos, sem o dizer,
Que o tempo de viver
Seria longo, suave, pleno
De anos e de dias. Sereno

E rico de esperança.
Capaz de nos animar
E de nos fazer amar
Cada passo desta dança

Em que crescemos,
Sempre com vagar,
Como se fosse chegar
A paz que, pelo menos,

Nos deixasse cumprir
As promessas que, a rir,
Calámos em segredo,
Travados pelo medo.

Sempre, nessas juras de novo mundo,
Fingimos não saber
(embora todos saibamos, no fundo)
Que o tempo não permite
Viver além do limite
Que é morrer.

Mesmo se muitos,
Os anos são poucos no coração.
Assim no teu, Mãe, que sem razão
Parou.
Calou
Todo o amor
Que só dentro de mim grita
Um berro que me agita,
Sob a máscara petrificada
De quem não acredita.

Não quisemos saber, querida,
(embora o soubéssemos bem)
Que não se manda no tempo e na vida.
Que apenas se obedece,
Morrendo
Ou vivendo
Com a morte.

(Re)aprendendo
A viver
Até
Ao
Fim.

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