A criação do mundo


Pois há muito tempo que não perorava sobre as diferenças das nossas terrinhas...

Creio que qualquer português que não fique fechado na paróquia já quis saber, nalguma ocasião, que diabo de ritmo de vida têm os espanhóis, que, aparentemente, descobriram que é possível desenvolver um país estando permanentemente a dormir, a comer ou a beber. A visão pecará por exagerada, admito, mas que é verdade que os gajos estão sempre alegremente nos bares ao fim da tarde, lá isso é; que enchem as ruas até às tantas, lá isso é; que não há lojas abertas manhã cedo, lá isso é; que têm petiscos magníficos, lá isso é. Um dia, pus o problema dos horários em Espanha ao Vasco Lourinho - quem não se lembra dele?, dos maiores reaças que já conheci, mas um tipo simpático -, cuja resposta foi desconcertante: "Vivo aqui há trinta anos e ainda não compreendi".

Depois, lá esclareceu qualquer coisa: "Numa loja, a maior ambição do tipo que tem a chave, para abrir a porta de manhã, é deixar de ser ele a abrir a porta".

Mas o que mais me interessa, agora, são as ruas cheias de gente. Aí, o antigo correspondente da RTP falou nas inevitáveis diferenças culturais entre Madrid e Barcelona, lembrando que os da Catalunha têm o hábito de receber em casa, algo bem mais raro entre os da capital. Ora, acabei de ler um texto do meu conterrâneo Manuel Serrão, no blogue Bússola, em que essa diferença é decalcada na dualidade Porto-Lisboa. Se, por um lado, me parece bem, o certo é que não gosto dessas verdades definitivas, porque das coisas que mais me entristecem no Porto é o deserto em que que a cidade se transforma quando inactiva. Quando os espanhóis (e não são só os de Madrid) saem do trabalho, juntam-se para uns copos e umas tapas, conversam alegremente, circulam descontraidamente. Por cá (e em Lisboa é a mesma coisa), vemos a multidão carrancuda em filas para os transportes que as levam aos subúrbios. Enquanto os espanhóis têm bares aos pontapés, nós temos o "pão quente" que fecha às sete, o café que adormece se não estiver a dar a bola, o restaurante que só serve até às 22, quando não se governa exclusivamente com almoços servidos à classe trabalhadora.

Os de Barcelona recebem em casa, os do Porto recebem. Os de Madrid não recebem? E os de Lisboa? Não sei se se passa o mesmo nas duas capitais, mas, se assim é, a minha explicação é outra. Embora Lisboa seja a cidade mais cantada, ilusão que resulta da forma quase absoluta como domina o universo mediático português, é, enquanto conceito algo muito mais difuso do que o Porto. Tem menos alma. Porque a convergência permanente de pessoas que ali vão em busca de oportunidades (o típico português "adaptável", que logo se torna "alfacinha de gema") fazem com que a identidade lisboeta seja uma miragem, fado enlatado que apenas serve para as promoções turísticas do ministro Manuel Pinho. Assim, a alma de Lisboa é algo que não se percebe bem, é um vazio que os de lá disfarçam com a máscara do cosmopolitismo.

Só que nada disso chega para demonizar os encontros em restaurantes ou o convívio libertador ao fim da tarde. É isso que falta ao Porto. Toda a gente, arranjada, na rua, a celebrar a vida (ou a suportar a vida). Pelo menos, quando não chove.

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