A criação do mundo


Duas bolas no mapa

Se está no futebol a essência do que é patriótico nos dias que correm, nada mais havendo que encha de bandeiras as varandas como de colchas em dia de procissão, também na bola encontraremos o que resta de combatividade a uma sociedade que parece acomodada. Só aí ouvimos uníssonos urros tribais, só aí vemos gente que, de emblema em riste, transfere para os relvados rivalidades que tocam todos os outros aspectos da vida. Em dia de F. C. Porto-Benfica, como hoje, vem à tona uma rivalidade que muitos, de ambos os lados, consideram desprovida de sentido. Treinador que vista de azul e branco sabe que perder com os que de vermelho jogam, em casa, pode ser pior do que deixar escapar o campeonato. É isso importante? Não: é fundamental.

Pequeno é o país, mas muitas são as realidades que nele coexistem. Porto e Lisboa, desde que nasceram e à medida que cresceram, cumpriram destinos diferentes, mas o rumo administrativo tomado pela História ditou dependências que no Norte são mal aceites, porque consideradas excessivas. E porque contestadas ao longo de gerações e de séculos. Desde muito antes de haver futebol.

Comparar as duas cidades é, mais do que um exercício complicado, algo que faz pouco sentido, atendendo a que nunca ambas evoluíram em igualdade de circunstâncias, primeiro pelos ditames de uma evolução natural, digamos assim, depois por razões de Estado, se assim podemos dizer. Mas as discrepâncias entre elas ajudam a perceber o que os pontapés na bola simbolizam. Os indicadores mostram com clareza que a capital atrai. Pessoas, empresas, investimentos, recursos. Não necessariamente por estratégias do Sul, como diz o discurso populista, mas porque o país funciona assim.

Indo aqui ao lado, a essa Espanha em que muitos querem ver uma identidade colectiva paralela à nossa, temos o exemplo da rivalidade entre Madrid e Barcelona, também decalcada na relação entre as principais equipas de futebol dessas cidades. Mas é um exemplo que em nada reflecte o caso português. Barcelona nasceu e cresceu como importantíssimo porto do trato mediterrânico, no coração de uma região que sempre viveu à margem das Castelas (à Catalunha correspondia, no tempo de Carlos Magno, a Marca Espanhola, zona-tampão de defesa do império, e nunca essa influência dos francos se perdeu). Enquanto capital, Madrid é a invenção de um outro império, o de Filipe II (primeiro do nome em Portugal), que para ali mudou a corte em 1561. Uma e outra seguiram os respectivos rumos, transformando-se em grandes metrópoles. Tal como cá? Não.

Pelas condições naturais, isto é, pelo extraordinário porto natural que é o estuário do Tejo, Lisboa era, na Idade Média, a única cidade cosmopolita e de dimensão europeia no reino, enquanto o Porto era um bem menor burgo que, embora mantendo desde cedo ligações comerciais ao exterior, designadamente ao Norte da Europa, crescia a um ritmo muito mais compassado. Se já assim era, muito mais passou a ser com o Estado moderno, desenhado ainda num período tardo-medieval e solidificado com todas as letras no tempo d'El rey D. Manuel, o primeiro, senhor absoluto da pimenta, pai formal do centralismo português: "Mas um Estado forte, poderoso, rico e centralizado, servido por um numeroso funcionalismo dedicado e fiel, não é senão dificilmente compatível com uma ampla autonomia municipal: e assim, os municípios portugueses, que no período medieval tinham gozado da mais vasta autonomia administrativa e financeira, viram-se severamente limitados nessa autonomia pela intervenção do poder central manuelino" (Diogo Freitas do Amaral, in "D. Manuel I e a construção do Estado moderno em Portugal").

Assim continua a ser, em boa parte, num país que rejeitou a regionalização. Se em Espanha (lá voltamos nós) as autonomias são garante da unidade de uma Nação heterogénea, por cá, em 1998, foram vistas pelo eleitorado como potenciais veículos para a desagregação da unidade nacional (e não deixa de ser curioso, ao rever os resultados do referendo, notar como a mudança administrativa foi rejeitada a Norte, onde o conservadorismo se sobrepôs ao inconformismo).

A cidade do Porto será, apenas, a face mais visível desse inconformismo. E a que mais o cultivou, porque teve forte afirmação, dos tempos do trato internacional do vinho àqueles em que estava na vanguarda da dinâmica industrial das regiões vizinhas. Mas essa face vai-se perdendo. Os bancos portuenses desapareceram e surgiram outros que, com sede no Porto, é em Lisboa que existem de facto. Empresas mudam-se para a capital. Homens de negócios buscam a proximidade do poder, o verdadeiro, isto é, o central. Pessoas estabelecem-se junto ao Tejo, ou nos arrabaldes, porque aí terão mais possibilidades de progredir em carreiras profissionais. E quase toda a informação que o país consome é produzida em Lisboa. Dos grandes jornais portuenses, só o JN mantém a estatura, e a televisão, provavelmente o mais influente molde das personalidades deste tempo, emana quase totalmente da capital: onde estão os comentadores, os notáveis, os famosos e toda a substantivação imaginável, que se promove mutuamente numa espécie de circuito fechado, em que o país exterior entra de vez em quando.

Confrontar cidades passa, evidentemente, por dizer que uma é muito maior do que outra. Mas sê-lo-á assim tanto? Segundo estimativas do Instituto Nacional de Estatística (o próximo recenseamento geral da população só ocorrerá em 2011), a população da Grande Lisboa, no fim de 2006, seria de 2 019 529 pessoas, enquanto no Grande Porto habitariam, nesse momento, 1 279 923. A diferença é significativa, certo, mas fica claro que o Porto e concelhos circundantes constituem um aglomerado urbano de significativa dimensão, que, porém, não consegue garantir às pessoas que o habitam qualidade de vida que se aproxime da que há na capital, onde os salários, segundo é recorrentemente noticiado, são superiores em 50% aos do resto do país, onde o poder de compra dos cidadãos é o triplo do que têm os portuenses, que estão no coração da região do país mais penalizada pelo desemprego.

Quase metade do crédito concedido pela banca é injectado em Lisboa, enquanto o Porto fica pelos 11,9%. É outra dinâmica, já se vê. Segundo elementos da Área Metropolitana do Porto, do quarto trimestre de 2004 ao segundo trimestre de 2006 foram constituídas na Grande Área Metropolitana de Lisboa 14 594 sociedades, mais do dobro das que se formaram na Grande Área Metropolitana do Porto (6837). E a dimensão das empresas é totalmente díspar, como se vê pelo capital social das sociedades constituídas: 1011 milhões de euros em Lisboa, grosso modo, contra 223,5 milhões de euros no Porto. Também no balanço entre sociedades constituídas e dissolvidas o Porto está em desvantagem. E o crescimento patente no número de fogos construídos - de 2004 a Fevereiro de 2007 - confirma a regra: 41 212 contra 19 342. Que mais? Lisboa (falamos ainda das grandes áreas metropolitanas), onde se vai concentrando a população mais qualificada, levantou das caixas multibanco, de 2004 a 2007, perto de 18 260 milhões de euros, enquanto o Porto tirou das paredes 8,4 mil milhões (lembram-se da diferença da população?).

Iríamos por aí fora, comparando indicadores. E se é claro que o caminho do Porto deve ser trilhado olhando para o futuro, não para a capital, torna-se notório que este é um país muito desequilibrado (e o que dirão as regiões penalizadas do Interior!). Excepto, pois, no futebol dos últimos 30 anos. Na pujante cidade de oitocentos, onde se fizeram revoluções, onde a República foi proclamada com quase vinte anos de antecedência, foi a penhora de uma peça de louça sanitária, no velhinho Estádio das Antas, que juntou o povo indignado na rua. Talvez porque as causas vitoriosas dêem mais força a quem as defende.

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Texto publicado na edição de hoje do "Jornal de Notícias"

nota: às vezes, sinto que o que se escreve deve ser munido de legendas explicativas, pois as pessoas não vão além de leituras epidérmicas moldadas por aquilo que já pensam sobre os assuntos; enfim, sei que os leitores que cá vêm não serão desses.

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Os jornalistas morreram antes dos jornais.




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