A criação do mundo


A preguiça e outras distracções

Dos vários expedientes para disfarçar os momentos de desinteresse pelo blogue ou pela blogosfera, muitos deles já por aqui experimentados, talvez o mais honesto seja reflectir sobre o que isto é ou sobre o que significa. Significa tudo e nada, pois tudo o que é a nossa vida é nada no esmagamento implacável dos tempos. E se um colega, hoje, criticando a letargia d’A Criação do Mundo, aconselhava o recurso despudorado a vídeos do YouTube – “Mete lá qualquer coisa do Stravinsky” –, a audição, há pouco, da entrevista dada à Antena 1 pela Leonor, uma dessas pessoas que ganham forma na blogosfera e que nos surpreendem em situações destas, porque têm voz e existência (sim, claro, todos temos, isto é só para dar um toque poético à prosa, queiram pois desculpar), ouvi-la, dizia eu, recentrou-me numa ideia que tenho desde que cheguei a este universo paralelo, no Verão de 2003: por mais pessoal que um blogue seja, ou até intimista, na justa medida daquilo que entendemos partilhar sem que nos sintamos devassados, destina-se a ser lido, pelo que pressupõe um sentido de responsabilidade idêntico ao que preside à escrita num jornal nacional, que, como sabem, é o meu modo de vida.

Longe vai essa febre nascida em 2003 e, sinceramente, já não há pachorra para andar por aqui a comentar tudo e mais alguma coisa. Também isso, associado aos afazeres e canseiras do “mundo real”, ajuda a que o blogue ganhe ferrugem nas engrenagens e teias de aranha nas alavancas. Mas é a noção do leitor, a ideia de que não vale a pena dar-lhe as côdeas ressequidas de um pão desmiolado, que mais contribui para o silêncio. Isso, claro, e a preocupação de não traçar da vida apenas o negro retrato que dela por vezes fazemos, enganados que somos pelo torpor em que nos põe a pusilanimidade com que, tantas vezes, somos obrigados a conviver e, pior, a interagir.

Contava-me há dias um amigo, cuja identidade omitirei por ser um escritor sexagenário de renome nacional (se ele ler identifica-se), que havia, no manual único de filosofia que teve de engolir no liceu, pérolas como a que cito de cor: “A distracção é uma característica dos sábios, dos inocentes e dos basbaques”. Nalguma categoria hão-de colocar-me os leitores, tão distraído de vós tenho andado.

Fracas letras

Ao ler

"Estas pegadas, invisíveis a olho nu, haviam sido registadas pela película; a verdade é que o fraco da lâmpada do flash tinha revelado a sua presença com uma exactidão extraordinária.",

fiquei de tal modo atarantado que não descansei enquanto não dei com isto:

"The prints, not noticeable to the naked eye, registered on film; indeed, the delineating glare of a flashbulb had revealed their presence with superb exactness."

Como terão reparado, encalhei na passagem "o fraco da lâmpada do flash", milagrosamente extraída do original "the delineating glare of a flashbulb ". O período em português integra a versão que tenho em mãos de "A Sangue Frio" (In Cold Blood), de Truman Capote, que decidi ler com verdadeiros olhos (o primeiro contacto com o texto havia sido de raspão, há sei lá quantos anos), ao dar de caras com um exemplar que para aqui tinha. Mais do que um novo episódio da fatalidade "traduttore traditore", noto a confirmação de que a cavalo dado há que olhar o dente. Explicando: o volume que tenho em mãos é oferta de uma revista e, sendo a segunda vez que me atrevo a ler um livro desses de promoção, volto a verificar que a cultura para o povo é feita com o mesmo esmero com que se enchem sacos de batatas. A primeira experiência havia sido o "Moby Dick", de Herman Melville, aparentemente vertido para português por um programa de tradução automática e pomposamente resguardado com capa dura. Bom para calçar móveis ou para acender lareiras.

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Acabo de escrever o post e vejo que, logo a seguir, "he was scheduled for a second interview, at which time he was to be given a polygraph test" dá lugar a "foi-lhe marcado segundo interrogatório, durante o qual teria de fazer declarações por escrito".

Assim sendo, há que identificar a tradutora, uma senhora Maria Isabel Braga, que com tal competência fixou o texto para a "Livros do Brasil", que o cedeu para que fosse impresso posteriormente pela Abril/Controjornal, de forma a que o catastrófico resultado pudesse ser distribuído com a "Visão".

Mesmo agora

Foi mesmo agora, Mãe, há um ano exacto. Sou aquele menino que quis parecer homem ao teu lado, para suavizar a partida, mas que ainda hoje procura o teu colo nos silêncios profundos de cada dia.

Serviço público de televisão, my ass

Assim é: eu não queria blogar coisa alguma. Vi há pouco um programa sobre touradas, mera propaganda dessa actividade, que me deixou furioso, ao ponto de ligar aqui a engenhoca para escrever ao provedor do telespectador da RTP. Mais fiquei ainda, porque o sistema de envio de queixas não está a funcionar, terei de tentar novamente amanhã. Mas apetece-me pôr aqui a tirada final da exposição, que, assim à primeira vista, nem está mal: "(...) de uma ponta a outra, a apologia da masculinidade primitiva, que se confunde com o suposto heroísmo de enfrentar a morte num ritual público, quando os verdadeiros progresso e aperfeiçoamento da humanidade sempre dependeram de outra bem mais ousada atitude: enfrentar a vida."




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