A criação do mundo


O Porto Oriental no final do século XIX

Foi com muita pena que não pude assistir à apresentação de "O Porto Oriental no final do século XIX", do Jorge Ricardo Pinto. Terei agora (desculpem-me o uso de um dos mais horrendos chavões do desportivês) de correr atrás do prejuízo (quem corre atrás do prejuízo?!... foge-se do dito, isso sim, havendo engenho ou sorte, conforme as circunstâncias). Enfim, sem mais divagações, o autor, pelo que já nos habituou na blogosfera, particularmente no saudoso Avenida dos Aliados, mais do que um geógrafo urbano que estudou determinado período da evolução do Porto, é um apaixonado pela nossa cidade (e dragão, evidentemente!). Por isso, é impossível que não valha a pena, pelo que estou à vontade para recomendar às cegas.

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Mapa de cicatrizes

Aldeia do Mato, hoje Vale Formoso, Covilhã
Mulheres da minha vida: a minha mãe, Maria Manuela, ao colo da minha avó, Leontina, e a tia Livinha, irmã que era como filha da minha avó e teve na minha mãe uma espécie de primeira filha (simples...)

Todos os anos o grande calendário de uma empresa imobiliária, “A Confidente”, era pendurado lá em casa, na cozinha. Só a recordação importa, o nome da firma é irrelevante, como irrisória era a passagem dos dias e dos meses antes de ter consciência deles. Depois, essas marcas do tempo começaram a ganhar nexo, as férias que se aproximavam, sempre tantas, o Natal à vista, uma ou outra prenda que cairia no dia de anos... Muito cedo, porém, o calendário tornou-se aquilo que todos nele vamos construindo, um mapa de cicatrizes, um cíclico lembrete que reabre os lanhos na alma quando os julgamos selados. Não é o caso, sendo hoje dia de uma ferida ainda tão rasgada e funda. Neste teu aniversário, querida Mãe, só poderei beijar-te na memória, como o tenho feito todos os dias e todas as horas desde esse absurdo Novembro, sempre perplexo por ainda bater este meu coração, tão apertado o venho trazendo.

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Ahmed, o terrorista morto



Em Portugal, ventríloquo é sinónimo de patarata com um pato ao colo a dizer patacoadas. Jeff Dunham é americano e, se tiverem a paciência de ver o filme durante dez minutos, partilharão comigo um dos números mais hilariantes que já vi.

Post n.º 100 - Smith and Wesson and me

À falta de melhor, o centésimo post dest blogue serve, justamente, para assinalar que é o centésimo post deste blogue. E porque isto não corre no mainstream da erudição, deixo aqui uma cena memorável de tiros em que a verosimilhança não é tida nem achada. Neste excerto de "Sudden Impact" (1983), o quarto filme da série Dirty Harry, Callahan remata com a célebre frase "Go ahead, make my day!", mas é o diálogo a meio da cena, com um dos maus, que me enche as medidas:

Mau - What you doin’, pighead sucka?
Harry - Everyday for the last ten years, Loretta there has been giving me a large black coffee. Today she gives me a large black coffee, only it’s got sugar in it. A lotta sugar. I just came back to complain. Now you boys put those guns down.
Mau - Say what?...
Harry - Well, we're not just gonna let you walk out of here.
Mau - Who's “we” sucka?
Harry - Smith and Wesson and me.



P.S. - Apesar de republicano, Clint Eastwood é deus.

Cuba

Fidel sai de uma cena que já havia abandonado, e as alvíssaras ecoam pela blogosfera lusa, ufana da liberdade universal e de um sistema de harmonia auto-regulada aplicado a todo o mundo. Ora, parece evidente que o regime de Cuba, com toda a propriedade castrador e esclerosado, não presta. Uma revolução que triunfou enquanto quintal distante da União Soviética, que resistiu em quase asfixia ao fim da Guerra Fria e recebe algum oxigénio pago pelo petróleo do amigo Chávez, tem fracas perspectivas de sobrevivência. Mas a alegria generalizada é um disparate. Passo a passo, a ilha tenderá a ser, de novo, um quintal dos Estados Unidos. O Capitólio mantém-se, orgulhosamente, de pé, e todos os sucedâneos de Michael Corleone estão à espreita para recuperar o que julgam ter sido deles por direito divino. Quanto aos cubanos, ficarão sempre na merda, talvez com mais coca-colas, hamburguers e neon lights importadas de Vegas.

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All quiet on the western coast

Portugal é um país pequeno, mais pequeno ainda é o país que nos mostra a televisão, chamando-lhe de igual modo Portugal. É o país que não se preocupa com a possibilidade de, sei lá quando, a Área Metropolitana de Lisboa vir a albergar 45% da população nacional (disseram-no no "Prós & Contras" não como quem anuncia uma catástrofe nacional, a do esvaziamento do país, mas como um problema urbano que requer soluções), é o país que ouve atentamente um tipo qualquer, no mesmo espaço, a dizer que uma nova travessia do Tejo vai aproximar o Norte do Sul, isto é, Lisboa de Faro (assim mesmo, sem tirar nem pôr). Desliguei o televisor, porque tinha mais que fazer. Isto de chegar a casa, fazer o jantar, comer, dar de comer ao cão, levar o cão a passear e trazer o cão de passear distrai do resto. Até me esqueci da entrevista do primeiro-ministro, que, pelo que vejo nos blogues, não teve interesse por aí além, o que não admira, quando a maior preocupação da nossa massa crítica é o "fait-divers" dos projectos de engenharia. E do Sócrates passo para uma coisa que anda para aí nos blogues (nem polémica se lhe pode chamar), porque um tipo disse na televisão que anda para aí um blogue em que, alegadamente, assessores do Governo assumem a identidade de um qualquer cidadão para fazerem os fretes todos à política oficial, mas afinal o tipo existe mesmo e não não tem nada a ver com assessores, ai não que não tem, e não saímos disto porque há muita gente com pouco para fazer. Os blogues são isto, são o caos. Contam-se pelos dedos - metaforicamente, é claro - aqueles em que a um nome pode associar-se uma pessoa sem lugar para dúvidas. De resto, sejam assinados com alcunha descarada ou com nome e apelido que nada digam ao cidadão comum, valem apenas pela essência do que neles se escreve, devendo ser sempre muitas as reticências quanto às intenções que lhes subjazem. That's life, e perder tempo com isso é mera conversa de café.

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Volta, Guerra Fria, estás perdoada!

Enquanto unidade política, a União Europeia é falsa como a Jugoslávia de Tito, e é nos Balcãs que mais facilmente se confrontará com as fraquezas que a minam. A falta de uma posição consensual em relação à declaração unilateral de independência do Kosovo, feita hoje em Pristina, é sintomática, reforçando a ideia de que a Europa, incapaz de se construir como identidade, continua a ser uma espécie de estrutura esponjosa entalada entre as forças dos blocos dominantes, refeita que vai estando a Rússia do colapso. O orgulho que temos do processo de integração leva-nos a esquecer, quase sempre, que a Europa que somos foi impulsionada pela Guerra Fria e pela constituição de zonas de influência. Inventada pelos americanos, na medida em que o Plano Marshall foi o detonador do processo, a UE não soube, ainda, emancipar-se, permanecendo presa aos desígnios dos norte-americanos, assim embarcando numa espiral de contradições de que não há saída: o alargamento. Se a questão de Turquia é demasiado evidente, tratando-se de um elemento absolutamente estranho aos valores e à identidade da Europa, se uns e outra existem, o problema dos Balcãs é menos claro e encoberto por várias máscaras. Ou seja, se na Turquia o avanço do integralismo islâmico vai dando sinais claros, o Kosovo ainda mantém a aura de minoria oprimida que levou à intervenção da OTAN em 1999, apesar de todos os factores que criam a instabilidade endémica da região, dos étnicos aos religiosos. A obsessão ocidental pelo multiculturalismo, não sendo a génese do problema, cria terreno para que a Europa aceite ser um tabuleiro geostratégico dos Estados Unidos, sujeitando-se à iminência de uma explosão descontrolada e criando terreno para fenómenos de implosão no País Basco, na Córsega, em Chipre... Historicamente sérvio, o Kosovo foi asfixiado pela demografia e, aos olhos de muitos, é já visto naturalmente como um espaço albanês. A coisa poderia parecer normal, atendendo a que nada existe que nunca acabe e a que a mudança traça o curso natural da humanidade, mas poucos parecem querer ver que se vai encharcando com fertilizante terras carregadas de sementes de ódio. Espaço natural para o alargamento da União Europeia, ligando a Grécia a um todo territorial, a ex-Jugoslávia acarreta inúmeros perigos que dificilmente podem ser acautelados. Rancor, ódio e vingança estão sempre à espreita entre os povos que ali habitam, e a independência do Kosovo, por mais que todos o neguem, ajuda ao despertar da besta. A Rússia não quer abrir mão da influência nos Balcãs, que se vai mantendo através da Sérvia, os Estados Unidos não querem perder a possibilidade de construir ali um novo baluarte. No meio, sempre no meio, isto a que chamamos Europa. O Kosovo poderá significar mais um posto avançado do islamismo e, enquanto os EUA têm sempre um oceano de permeio, nós estamos todos ao virar da esquina.

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Small stuff


Saíram os andaimes e os panos, finalmente. É como se a minha casa tivesse sido operada às cataratas.

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Aquilo a que os americanos chamam "momentum"

Cartoon de Plantu no "Le Monde"

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Cable guys

Aparece-me à porta um prospector que se apresenta com a contundente credencial do Grupo Sonae. Na verdade, o que vejo é um cabide móvel de sorriso forçado, em que o fato, decerto emprestado, assenta como os sapatos do vagabundo de Chaplin, com a diferença de estes serem comestíveis. Estica-me de rompante o bacalhau, que aperto a contragosto antes de, no cumprimento da rotina habitual, dizer que não, sem lhe dar tempo de explicar ao que vinha. Começa, porém, a desbobinar a ladainha, e só passados alguns segundos o temporizador cerebral descodifica o “não”, que deve ter-lhe soado aos melhores dias do Zé Cabra. Já parado frente à minha porta, entreaberta para o cão não sair disparado a festejar a visita, parece estacar e solta um indignado “não tem?...”. Pelos vistos, a missão dele é inventariar a maquinaria digital que cada um guarda em casa, da fritadeira aos acessos à Internet. Esforçando-me por soar monocórdico, explico-lhe: “Respeito o seu trabalho, mas o que tenho ou deixo de ter não é da sua conta”. Tenta parecer descontraído, toma nota do andar como quem diz, triunfante, “estás listado” e desanda pelo patamar enquanto fecho a porta. Bem sei que esta rapaziada anda ali pelo único prazer de ganhar uns miseráveis cobres, mas não tenho paciência para a agressividade comercial das empresas. O mesmo se passa com a gente das televendas. Os da TV Cabo deixaram de me ligar, perguntando se tenho Internet em casa, a partir do momento em que, ao cabo de quatro dias consecutivos a receber mais do que uma chamada diária, assegurei que cancelaria a assinatura mal recebesse outro telefonema.

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Huckabee

Pregador criacionista, ultraconservador, reaça até mais não. Pior: apoiado por Chuck Norris!... Mas com sentido de humor, porque a isso são obrigados os candidatos norte-americanos. Mike Huckabee no "Colbert report".

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Escavações

Ainda no seguimento do que foi debatido aqui e referido aqui, prossigo no capítulo das revelações que não envergonham. O meu primeiro LP foi um álbum ao vivo dos Procol Harum, com a canadiana Edmonton Simphony Orchestra (comprado, salvo erro, numa discoteca Gelmirez, em Vigo, que tinha o hábito de pôr um feio autocolante verde nas etiquetas do vinil). Um dos temas é este eterno "A salty dog", que fui descobrir numa interpretação de 1977, com Gary Brooker ainda em plena forma. Estes posts "pescados" no amigo YouTube, embora não agradem a toda a gente que saltita apressada de blogue em blogue, inserem-se numa espécie de fundo histórico, além de serem carinhosamente produzidos, na esperança de que possam deliciar uma ou outra alma saudosista.

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Breaking news

Vitórias expressivas de Barack Obama no Nebraska e no estado de Washington, embora os resultados ainda sejam parciais. Se Obama é o meu candidato, por ridículas que sejam estas declarações de apoio nos blogues portugueses, mais o é pela percepção que começa a haver de que Hillary Clinton estará mesmo dependente dos superdelegados, ou seja, das manobras de bastidores entre as elites partidárias, mesmo que ao arrepio do voto popular. E mais: a antiga primeira dama usa golpes baixos. Foi a única a apresentar-se às primárias do Michigan e da Florida, que haviam sido descartadas pela estrutura central do Partido Democrático, e quer agora, em tribunal, que os delegados correspondentes lhe sejam atribuídos...

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Doze palavras

A Leonor que me desculpe, mas eu quebro sempre estas correntes. E só respondo por o pedido ter vindo de uma das melhores blogueiras* desta choldra (parece mal, mas estou a parafrasear o Eça), na triste certeza de que não corresponderei ao desafio. Doze palavras, senhores, tenho de escolher as minhas doze palavras predilectas. Abrenúncio! Todas as restantes deste esburgado léxico me rogariam uma praga que faria corar de vergonha as do Egipto. São apenas uma dúzia, que outra dúzia poderá ser já amanhã. É que não me detenho muito na sonoridade das palavras. Isoladas, mesmo traduzindo conceitos bonitos ou oferecendo sonoridades melódicas, perdem todo o fascínio desse encadeamento que resulta na linguagem. Mas, enfim, prometi responder ao desafio. Podia armar-me em engraçadinho, reproduzindo doze meses do ano ou doze signos do Zodíaco. Mas não. Sem qualquer preferência e pela ordem alfabética que me parece ser regra do jogo, aqui ficam doze desses tijolos com que se erguem as mais deslumbrantes casas.

Adarve
Amorável
Azagaia
Cativar
Cornija
Gengibre
Imbricado
Partilha
Porto
Quimera
Sussurro
Telúrico

* apesar da aparente afinidade com aquele clube que, quando aqui é nomeado, surge sempre com minúscula e em corpo pequenininho.

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Se alguém souber explicar como é que isto já foi há vinte anos, por favor cale-se...


Marillion - Warm wet circles

No blogue do Paulo Querido debatem-se as manchas negras da memória musical de cada um, mas não quis seguir aqui esse caminho. Finalmente, encontrei no YouTube um concerto dos Marillion bem gravado (eu queria dar-vos "Sugar mice", mas alguém da Holanda decidiu desactivar a função que permite pôr aqui o filme). Marillion era a minha banda de culto nos anos 80. Vi-os cá no Porto em 1985, salvo erro, dois anos antes de ser gravado este magnífico espectáculo no festival Loreley, na Alemanha. Nunca conseguirei perceber como esta banda não foi um fenómeno planetário. O vídeo é da última digressão com Fish: quando ele saiu e foi substituído por um palerma qualquer, os Marillion morreram.

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Lusofolia

Vejo na televisão uma espécie de beatlemania por causa de um chavalo chamado Mickael Carreira. Antes, Carlos do Carmo disse coisas importantes, para que saibamos construir um fado mais optimista, mas poucos terão reparado.

Ah, isto é um programa do José Carlos Malato, mais um talk-show à portuguesa em que o apresentador exagera nos elogios aos convidados. Faz-me lembrar a primeira Volta a Portugal a que fui. O antigo ciclista Joaquim Andrade, que tinha um filho homónimo no pelotão e acompanhava a corrida como repórter de uma rádio local qualquer, no fim de cada etapa arrebanhava o herói do dia para um recanto da zona de chegada e punha-o nos píncaros, não em directo, mas metralhando palavras para o gravador:

_ Foste um herói nesta etapa, porque atacaste quando ninguém estava à espera, na subida para o alto da Porcalhota, e soubeste aguentar sozinho lá à frente, debaixo do calor, e mesmo quando o pelotão queria vir atrás de ti aguentaste o ritmo, com muito sacrifício, porque és um profissional de grande categoria, e só foste apanhado a três quilómetros da meta porque a sorte não esteve contigo. Chegaste na cauda do pelotão, mas foste o maior.

Finda a não-pergunta, o entrevistador, que antes combinara detalhes com o exaurido atleta, quase lhe cravava o aparelho nas ventas. A fita haveria de guardar fielmente as palavras do herói, que, ainda com os bofes de fora, lá respondia:

_ Obrigado.

E assim terminava a entrevista.

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Role models


Este gajo tem o Vicodin, eu tenho o Clonix. Ele é viciado, enquanto a série durar, eu vou-me arranjando, enquanto não for ao dentista...

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Se eu fosse americano...


... votava no tipo certo. Pelo menos, o teste diz que não me enganei.

(via Blasfémias)

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Super tuesday 2

Nisto das primárias americanas, é curioso lembrar que, em muitos estados, não temos democratas a escolher democratas e republicanos a escolher republicanos. Os eleitores designam o candidato da própria cor e o adversário que pretendem. Ou seja, têm sempre mais do que uma palavra a dizer e, seja qual for o desfecho nas eleições de Novembro, tê-lo-ão influenciado. Do lado dos democratas, Obama parece-me ser o que melhor aborda a globalidade dos eleitores, enquanto Clinton parece encostada ao peso do aparelho partidário. Triunfando em menos estados, a ex-primeira dama conseguiu os mais representativos (Califórnia e Nova Iorque à cabeça), mas o senador do Illinois contrariou as previsões de há uns tempos e manteve a corrida absolutamente aberta. É difícil alhearmo-nos das questões de raça e de género, que estarão a ter um peso muito importante neste processo, mas, para quem vê de fora, o ligeiro ascendente de Hillary cheira mais à força do conservadorismo num país em que as mentalidades estão longe de ser abertas.

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Super tuesday

Trabalho oblige, ponho-me a esta hora a ver os resultados das primárias americanas. As vitórias de Clinton em Nova Iorque e no Massachusetts (apesar da posição do clã Kennedy) indiciam a apetência por mais do mesmo. Parece-me que do que Obama precisa mesmo é de um milagre na Califórnia, mas não me cheira a milagres. Vou levar o Sancho à rua e dormir, que isto não nos diz respeito. Temos Cavaco, temos Sócrates, e a taróloga Maya anima as manhãs da televisão. Que mais poderá querer um país civilizado?

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Carnaval

Foto do meu Pai

Quando se fala na Idade Média (ai, como é falacioso isto das periodizações…), as pessoas tendem a pensar em tempos de medo, de regressão, de bruxas e feitiçaria, de boçalidade generalizada, de trevas. Ora bem, como diz o meu ilustre professor Armando Luís de Carvalho Homem, “dez séculos de trevas são trevas a mais”, e a corrente festividade é das melhores amostragens disso mesmo, pois guardado estava o negrume para uma idade que já não mediava coisa nenhuma. Nesses tempos de suposta escuridão, a Igreja, senhora de milenar sabedoria, soube construir uma fórmula para que os miseráveis – a base da pirâmide tripartida teorizada por Adalbéron de Laon – pudessem entender o triste fado que viviam como um desígnio divino ao qual deveriam resignar-se. Tal fórmula passava pela folia, presente ao longo de todo o ano na vida da gente comum, em que as estratégias de inversão/subversão, devidamente controladas, constituíam válvulas de escape que ajudavam a suportar o peso da cruz que o Criador pusera aos ombros dos não privilegiados. O homem era mulher, a mulher era barbuda, o tolo era visionário, o ignaro erudito… Enfim, o cão era gato, o gato era rato e o rato julgava-se elefante nesses dias de rebaldaria. Um dos fenómenos mais marcantes do género, no ocidente medieval, eram as festas do asno, em que um burro (asinino, de facto) era paramentado com vestes cardinalícias e posto no altar em funções, com sermão e missa zurrada. Todos participavam e riam, incluindo os clérigos, e todos sabiam que no dia seguinte regressava a ordem natural das coisas, em que poucos rezavam, outros poucos aguardavam a hora de combater e quase todos serviam sem esperança além da salvação a que, resignados com o fado, poderiam um dia chegar. Na transição da Idade Média para os tempos que os renascentistas apodaram de modernos, o quotidiano continuou a ser pautado pela instituição eclesiástica, mas tornou-se bem mais sombrio, bem mais assustador, bem mais austero. Com a moralização decorrente da Reforma tridentina (bem mais do que uma contra-reforma) veio a regra da penitência, o distanciamento do altar, o temor do confessionário, o pavor da denúncia. A estratégia de inversão não desapareceu, mas ficou expressamente cingida a um curto período de cada ano, aos dias que antecedem o jejum da Quaresma, a isso a que chamamos Carnaval. Fiel a essa estratégia de inversão, encimo este post com a minha fotografia, mascarado de menino feliz.

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Vamos lá ver...

António Capucho, que preside ao município de Cascais, diz que o regicídio foi "um atentado cobarde". Para usar de alguma polidez, direi que a inteligência não foi convidada para a inauguração da estátua de D. Carlos. Não se trata de enaltecer aqueles que mataram o rei, isso será ridículo ao cabo de cem anos e no seio de uma república já suficientemente solidificada, mas incomoda ver como um zé-ninguém fala dos que se predispuseram a morrer por uma causa, mesmo que matando. Já o que diz o sr. Duarte Pio sobre o deputado Fernando Rosas (ainda por cima um notável historiador) merece tanto crédito como tudo o que envolve a vida desse pretendente a coisa nenhuma: zero.

(via Arrastão)

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Hoje, o passado

Há cem anos, Alfredo Luís da Costa, Manuel dos Reis da Silva Buíça e outros conspiradores assassinaram o rei D. Carlos e o príncipe real, D. Luís Filipe. Pouco mais de dois anos e meio depois, a monarquia caiu e o país encetou o percurso republicano em que, com muitos avanços, recuos, conquistas e reveses, subsiste hoje sem grande contestação. A efeméride merece ser assinalada, na medida em que a maturidade de um povo não existe sem memória, e Portugal ainda precisa de amadurecer à força, nem que seja pelo aproveitamento exaustivo destes aniversários redondos.

Os atiradores, membros da Carbonária e, sem dúvida, republicanos, não foram propriamente heróis, nem a posteridade a isso deverá elevá-los. E não o faz. Até porque, contrariamente ao que tem sido sugerido nalguns meios, não me parece que a monarquia subsistiria se não houvesse regicídio. Hoje em dia, o esquema político das monarquias constitucionais apenas faz sentido em países que cedo desenvolveram formas de governo que não descuraram os cidadãos, como o Reino Unido ou os Países Baixos, em estados sem identidade e criados do nada num passado recente, como a Bélgica, ou em estados que congregam nações díspares e buscam na coroa um sinal de unidade, como a vizinha Espanha. Em sítios onde a República surge como natural corolário da libertação de monarquias absolutas e sociedades de privilégios, como Portugal ou França, só uma minoria defende a monarquia em nome de uma espécie de saudade congénita.

A ideia de aristocracia, algo que apenas existe no universo fantasista das revistas cor-de-rosa, é, na realidade, algo que escapa à natureza de sociedades que evoluíram para caminhos de liberdade e representatividade, sonhando com a ainda não atingida igualdade de oportunidades. Ser nobre nesse universo virtual, porque nada enquadra a nobreza à luz do Direito, é descender dos que primeiramente foram nobilitados, e esses são, ao longo do curso dos tempos, os que mataram mais, os que roubaram mais, os que serviram fielmente ou os que compraram a honraria do trato e da isenção. Hoje, matar não nobilita. Tomar pela força também não. Explorar também não. Subornar também não. Essas coisas podem dar proventos, mas não conferem honra, não configuram ideais de nobreza no sentido moral que podemos associar ao termo. Há alguns, porém, que assim não entendem, aqueles que ainda vivem ressabiados, agarrados a anéis de brasão, a retratos de tetravôs abastados, a ícones de um passado que acreditam correr-lhes nas veias. Muitos deles são monárquicos, usam bigodes farfalhudos e gostam de touradas.

Ora, são os monárquicos, tão expressivos e tão alienados como os amigos de Olivença, quem hoje homenageia na memória do senhor D. Carlos esse passado irrepetível. São paladinos de causas patéticas, seja por Olivença nunca vir a ser nossa, seja por apresentarem um abstruso pretendente ao trono, como é o senhor Duarte Pio de Bragança, fruto de uma linha miguelista que havia sido banida. Ora, não vindo a causa oliventina a propósito, importa gastar algumas palavras com os que pretendiam que o dia de hoje fosse de luto nacional. Felizmente, são livres de pretender o que lhes apetecer, livres que são de ter apetências absurdas. Mas a República nunca poderia mimoseá-los, enveredando por um caminho de autocomiseração em que os cidadãos não se revêem. O luto, mais do que honrar um rei que nasceu para ser vítima, porque os privilégios de nascimento teriam de ter um reverso de medalha, seria um acto de contrição da República e, consequentemente, uma ofensa aos que combateram a iniquidade, aos que tombaram no 31 de Janeiro, aos que fizeram o 5 de Outubro, aos que ajudaram a cair o Estado Novo e aos que travaram as tentações totalitárias subsequentes.

Porque embrutecido e apimbalhado, este país não é, hoje, verdadeiramente livre. Mas as instituições em que nos representamos teriam batido ainda mais no fundo se, face às solicitações esclerosadas dos monárquicos, não tivessem sabido resistir à tentação do universo cor-de-rosa. Aristocrático, fútil e corrosivo. Ainda bem que o não fizeram.


Ver aqui o que escrevi sobre o regicídio no JN

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Teoria da relatividade

Num sítio onde janto com alguma frequência, encontrei há pouco um amigo de juventude com quem, ali mesmo, apanhei grandes bebedeiras, nos tempos em que não sabíamos o que queríamos da vida ou o que ela pretendia de nós. Presumo que ainda não saibamos. Eu estou onde estou, ele está cheio de dinheiro. Mais por opção do que por necessidade, começou cedo a trabalhar numa área que florescia e que está hoje no centro das nossas vidas (ou não haveria blogues). E está cheio de dinheiro, fazendo questão de o aparentar. Não que tenha ganho em presunção, mas os Mercedes são cada vez maiores e mais potentes, os gadgets são “state of the art”, como dizem nos meios técnicos… Vejo-o agora de longe a longe, sei que mudou de casa para um duplex que pagaria um bloco de apartamentos a custo controlado. Aqueles com quem agora convive são os que, como ele, têm barcos e casas de férias sei lá bem onde… Enfim, regozijo-me com o sucesso dele, mas fico desconcertado quando me diz que, finalmente, há um negócio que o pode deixar bem. Porque nem todos os anos são de vacas gordas, porque 2006 foi magnífico e 2007 meteu nojo, porque, enfim, já não é o mesmo com quem passei férias na caravana de uma tia qualquer que a tinha estacionada em permanência no parque de campismo da Figueira da Foz. Mais do que gerar inveja, que não sinto e de nada me serve, estes encontros fortuitos ensinam-me que eu, mero assalariado contando os tostões em função de um nível de vida fracote, em que as grandes extravagâncias são a compra de livros ou as idas a um ou outro restaurante, tenho de ter em conta que o meu pouco é relativo e os meus queixumes ofendem os que vivem dignamente com muito menos. Mas queixo-me na mesma, à medida das minhas grandes expectativas, mero grão de areia face ao quimérico programa de actividades desse meu amigo de outros tempos.

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