A criação do mundo


Carnaval

Foto do meu Pai

Quando se fala na Idade Média (ai, como é falacioso isto das periodizações…), as pessoas tendem a pensar em tempos de medo, de regressão, de bruxas e feitiçaria, de boçalidade generalizada, de trevas. Ora bem, como diz o meu ilustre professor Armando Luís de Carvalho Homem, “dez séculos de trevas são trevas a mais”, e a corrente festividade é das melhores amostragens disso mesmo, pois guardado estava o negrume para uma idade que já não mediava coisa nenhuma. Nesses tempos de suposta escuridão, a Igreja, senhora de milenar sabedoria, soube construir uma fórmula para que os miseráveis – a base da pirâmide tripartida teorizada por Adalbéron de Laon – pudessem entender o triste fado que viviam como um desígnio divino ao qual deveriam resignar-se. Tal fórmula passava pela folia, presente ao longo de todo o ano na vida da gente comum, em que as estratégias de inversão/subversão, devidamente controladas, constituíam válvulas de escape que ajudavam a suportar o peso da cruz que o Criador pusera aos ombros dos não privilegiados. O homem era mulher, a mulher era barbuda, o tolo era visionário, o ignaro erudito… Enfim, o cão era gato, o gato era rato e o rato julgava-se elefante nesses dias de rebaldaria. Um dos fenómenos mais marcantes do género, no ocidente medieval, eram as festas do asno, em que um burro (asinino, de facto) era paramentado com vestes cardinalícias e posto no altar em funções, com sermão e missa zurrada. Todos participavam e riam, incluindo os clérigos, e todos sabiam que no dia seguinte regressava a ordem natural das coisas, em que poucos rezavam, outros poucos aguardavam a hora de combater e quase todos serviam sem esperança além da salvação a que, resignados com o fado, poderiam um dia chegar. Na transição da Idade Média para os tempos que os renascentistas apodaram de modernos, o quotidiano continuou a ser pautado pela instituição eclesiástica, mas tornou-se bem mais sombrio, bem mais assustador, bem mais austero. Com a moralização decorrente da Reforma tridentina (bem mais do que uma contra-reforma) veio a regra da penitência, o distanciamento do altar, o temor do confessionário, o pavor da denúncia. A estratégia de inversão não desapareceu, mas ficou expressamente cingida a um curto período de cada ano, aos dias que antecedem o jejum da Quaresma, a isso a que chamamos Carnaval. Fiel a essa estratégia de inversão, encimo este post com a minha fotografia, mascarado de menino feliz.

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1 Responses to “Carnaval”

  1. # Anonymous Anónimo

    Caro POS
    Andava eu a pesquisar no mundo virtual teorias sobre as periodizações da História (as quais, à semelhança do POS, também eu entendo serem falaciosas...), e eis que encontrei este post! É curiso onde acabamos por ir parar só porque, já em estado de cansaço de tanta procura e como desabafo, escrevemos no Google "ai isto das periodizações"... Como gostei muito da forma como este post foi redigido, senti curiosidade em ler mais posts... perdoe-me a intromissão, mas li "de fio a pavio" os posts do blogue e fiquei maravilhada, o POS escreve muito bem! Os meus parabéns, continue! Já o adicionei aos meus "Favorites"!
    Paula Morais
    mail@paulamorais.pt  

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