A criação do mundo


Mais do mesmo de mais

Diz António Barreto que está “farto do PSD”, temendo os efeitos que a patética crise no partido possa gerar na sociedade e na democracia portuguesas. O problema é não ser patriótico estar farto de Portugal. Dizê-lo seria excessivo, decerto, e quem a tal se atrevesse seria penalizado pelos virginais defensores que empunham a espada de D. Afonso Henriques por dá cá aquela palha. A verdade é que este país é, pelo menos, cansativo e parolo. É do próprio país a culpa – nossa, dos que vieram antes e dos que virão depois – de ter evoluído rumo a um bipartidarismo absurdo. Não propriamente pelo conceito da alternância, mas pela bizarra circunstância de serem permanentes candidatas ao Governo duas formações absolutamente similares e bizarras, em que o liberalismo vive de braço dado com a social-democracia. Vai estourando o PSD porque o PS está na mó de cima, mas ambos nadam na mesma sopa de contradições. Já para não falar dos profissionais da política, despidos de ideias e satisfeitos por se moverem nesse caldeirão de intrigas, na expectativa de que a sopa seja repartida por bem areados tachinhos.

Déjà vu e mais qualquer coisa



Acabaram de ver (se não viram, ainda vão a tempo) a espantosa versão de "Life on Mars?" com que David Bowie deu início à participação no programa "Storytellers" do VH1 (1999). É uma reincidência minha, atendendo a que uma vez disponibilizei este filme na Fonte das Virtudes. Mas apetece-me. E complemento com "Word on a wing", o final do mesmo espectáculo, absolutamente brilhante pelo carácter intimista, pela qualidade do artista enquanto contador de histórias e, claro, por uma excelente banda, em que, além dos enormes Mike Garson (piano) e Reeves Gabrels (guitarra), vemos Mark Plati (guitarra), Gail Ann Dorsey (baixo) e Sterling Campbell (bateria), além dos coros a cargo de Lani Groves e Holly Palmer.

Antes de Abril (II)

Volto a pegar no compêndio de António G. Matoso e abro-o ao acaso. É um livro em que não há páginas inocentes. E, se pensarmos que, durante anos e anos, era esse o único instrumento de trabalho dos não muitos que chegavam ao sexto ano dos liceus, podemos ter uma vaga ideia do papel que a escola teve na solidificação de preconceitos e no estímulo dado a ódios congénitos. O anti-semitismo é coisa bem antiga, claro, mas devemos ter em conta que o compêndio foi publicado originalmente em 1938 (tenho em mãos uma edição de 1942), num contexto europeu que não terei aqui de descrever. Ora, foi nas páginas referentes à expulsão dos judeus em 1497-98, decretada por el-rey D. Manuel, que abri o livro. E as considerações introdutórias compelem-nos, evidentemente, a fazer juízos de intenções:

"Os judeus, apegados às suas velhas crenças, cônscios da superioridade da
sua raça, confiados na protecção infinita do seu Deus, orgulhosos da sua
ascendência superior, eram um elemento estranho no meio dos outros povos.
Pretendiam dominar pelo seu carácter arrogante; manifestavam em tudo o seu
proselitismo ardente, a sua ganância insatisfeita. Superiores, sob o ponto de
vista intelectual, depressa conseguiam situações vantajosas, perante o espanto
dos naturais, que não ousavam passar duma mediania trabalhosa e difícil.
"

Poderia dar mais exemplos, mas vou ficando por aí. É evidente que os judeus da Sefarad (a Península Ibérica), ou seja, os sefarditas (ou os sefardim, se usarmos um plural hebraico) eram extraordinariamente letrados, por contraste com a boçalidade que imperava no Ocidente cristão, onde os próprios padres (não falo das elites eclesiásticas regulares ou seculares), guardiães locais do livro, eram semianalfabetos cuja "latinice" se resumia à reprodução de arengas memorizadas e corrompidas. Porém, os estudos mostram que em poucos lugares como em Portugal os judeus faziam parte de um todo. Apesar da vivência comunitária e das redes herméticas de negócio (os contactos internacionais entre judeus fizeram deles precursores do mercado mundial), eram infinitamente mais abertos ao outro do que os ashkenazy, ou seja (e perdoando-se a generalização), os judeus mais concentrados na Europa oriental, esses sim ortodoxos e fechados. Essa do "proselitismo ardente" não lembra ao diabo, sendo evidente que os judeus, enquanto "povo eleito", embora aceitem a conversão, não andam para aí a arrebanhar crentes (judeu é filho de mãe judia, simples como isso), mas o mais impressionante é o tom acintoso: dizer, no apogeu dos nacionalismos exaltadores da raça (seja lá isso o que for), que os judeus eram "cônscios da superioridade da sua raça" não levaria, decerto, a bons resultados. Tal como o uso do possessivo em "seu Deus", uma imbecilidade recorrente, atendendo a que as religiões do livro entroncam todas em Abraão, ou seja, no Deus de Abraão, sempre o mesmo, indiferente a que o tratem por Deus, Adonai, Javé, Alá ou o que quer que seja.

Não é falso que houvesse ódio aos judeus, na Idade Média como sempre. Se havia pestes, por exemplo, eram acusados de terem envenenado os poços. Porquê? As epidemias não grassavam nas comunidades judaicas, apenas porque, nos seguimento das normas sanitárias expressas pela Tora ou pela tradição talmúdica, eram infinitamente mais limpos do que os restantes. O que há aqui a reter é a forma como o nacionalismo do século XX estimulou estes rancores absurdos. A religião é apresentada como fundamento da nacionalidade (sabiam lá o que era nacionalidade, na Idade Média!...), pelo que as perseguições (a referência de Matoso é António Sardinha, está tudo dito) resultaram da "irredutibilidade dos judeus e dos cristãos novos em se adaptarem à vida nacional".

Só por pudor científico Matoso não terá usado a rebuscada fórmula dos "assassinos de Cristo". Mas não pode deixar de espantar o branqueamento da Inquisição (pouco estudada, ao tempo em que este manual foi produzido): aponta-se que o Santo Ofício não terá sido tão rigoroso como isso, por "só" terem sido executadas na fogueira, 1454 pessoas, das 24 522 julgadas entre 1536 e 1732 (não sei onde foi ele buscar estes números, não os entendam como verdadeiros), esquecendo todo o clima persecutório e ignorando que, mais do que acender umas fogueiras para gáudio popular, o que os inquisidores queriam era arrestar os bens dos cristãos novos, algo que fizeram com enorme eficácia.

Enfim, tudo isto para dizer que as histórias mal contadas - propositadamente mal contadas, claro - resultam em mentalidades mal formadas e feridas mal saradas. E esses são males que muito custam a curar.

Façam as contas

Como jornalista, tenho a obrigação de acreditar que não basta ser-se ignorante e destituído de espírito crítico para se aceder à profissão, mas às vezes parece mesmo que sim. Isso nota-se nas pequenas coisas, que são, afinal, as maiores mostras da ligeireza com que se está na vida e na profissão. Uma boa ideia, por exemplo, é deixarem, de uma vez por todas, de dizer que houve "48 anos de Estado Novo" em Portugal. Ora bolas! Isto vem da retórica do pós-25 de Abril, em que, por tudo e por nada, se falava em "48 anos de fascismo", mas a verdade é o que Estado Novo foi definitivamente instituído pela Constituição de 1933. Ou seja, não surge no golpe militar de 28 de Maio de 1926. Depois disso, como dizia o Guterres, é só fazer as contas e poupar o meu televisor aos insultos com que, uma ou outra vez, o vou brindando.

Canta a Primavera, pá




Actualização: há que tempos que tinha preparado este vídeo da segunda versão de "Tanto mar" para postar hoje; vi entretanto, via Arrastão, que alguém disponibilizou no YouTube a rara versão original, lançada em Portugal e censurada no Brasil; tenho de a pôr também aqui, para que o quadro fique completo.

É entrar, é entrar!...

Finalmente, sinto que a consagração está próxima e que o sitemeter vai rebentar pelas costuras. Experimentem teclar, no Google, a expressão "baixando as calcinhas". Qual é o primeiro resultado da busca, qual é? Nem mais: este vosso estabelecimento vem à cabeça, ultrapassando tudo o que terá motivado o/a cibernauta que, inadvertidamente, deu de caras com esta sucessão de divagações nada apimentadas. Ignoro se, para manter o êxito, terei de seguir uma nova linha editorial. Por mero interesse científico, deixo aqui, sem nexo, a oração "rasgar as calcinhas", a que poderei acrescentar "arrancar as calcinhas à dentada". Vamos lá ver no que dá. Para as estatísticas da blogosfera, um tarado vale tanto como um seminarista (e se o seminarista for tarado, vale por dois?...). Ou seja, é apenas mais um degrau no contador de visitas que nem por isso me afaga o ego.

Philly

A dezena de pontos percentuais de vantagem conseguida na Pensilvânia é, para Hillary Clinton, não o balão de oxigénio de que necessitava, mas uma borrifadela de laca que a mantém, aparentemente, tesa na corrida e a salvo das pressões partidárias para abandonar. A verdade é que Barack Obama reduziu substancialmente o grande fosso que existia e mantém a dinâmica vitoriosa. Prevê-se que nenhum dos dois consiga, antes da convenção nacional do Partido Democrático, assegurar o número de delegados suficiente para garantir a nomeação, pelo que o folclore eleitoral está para durar. Interessa notar, ainda, como os resultados deste Estado são reveladores. Hillary ganhou, sobretudo, nos meios rurais da Pensilvânia. Em Filadélfia, naturalmente o condado com mais eleitores inscritos, Obama teve 65%, e até no Allegheny County (no coração da ruralidade, mas onde fica Pittsburgh, a segunda maior cidade da Pensilvânia), o senador do Illinois conseguiu chegar aos 46%, minando a grande aposta de Clinton, que era conseguir uma vantagem de dois dígitos bem mais substancial. Esta dualidade entre a América rural e a América urbana, que não se verifica em todo o lado, pode ser sobreposta aos dados étnicos e não deixa grandes dúvidas: para os "rednecks", a questão racial parece ser determinante.

Dia da Terra

Não direi que seja assim com toda a gente, mas "a aldeia" é coisa comum às pessoas da cidade. Eu, tripeiro de gema de primeira geração, tenho duas, mas a mais marcante é, como já terei dito algures, a terra da minha Mãe, Vale Formoso, concelho da Covilhã. Aí passávamos, nesses tempos que vão parecendo tão distantes, o mês de Setembro inteiro, ano após ano. Ora, houve alguém que chegou aqui ao blogue depois de introduzir no Google as palavras mágicas "fotos vale formoso/covilhã", pesquisa alheia que me levou ao blogue Máfia da Cova, a que roubei, descaradamente, a foto que se segue.


Hoje, Dia da Terra, a coisa não poderia começar pior. A febre das podas assassinas, tantas vezes denunciada por quem sabe, chegou aos caminhos da minha meninice. Esta estrada, uma das três que levam ao povo, como por lá se diz, era ladeada por árvores frondosas, que produziam sombras estupendas em praticamente toda a extensão. Quando andávamos com as bicicletas, ir dar "a volta ao ramal" significava, justamente sair da aldeia por um dos lados, ir até à estrada que liga a Covilhã à Guarda, virar depois na direcção de Manteigas e, após subida e curvas variadas, regressar a Vale Formoso (indiquei o circuito a azul na imagem do Google Earth).


Agora, a estrada é ladeada por cadáveres adiados, que tentarão crescer das feridas mas nunca voltarão a ser os portentos que foram. Por causa de uns imbecis quaisquer, não sei se da junta de freguesia se do município, apenas que imbecis.

Antes de Abril

O descrédito do parlamentarismo, inaugurado em Portugal com a revolução de 1820, estava pràticamente feito, pelos resultados a que conduzira o País. No campo doutrinário também a sua condenação há muito se realizara, mercê sobretudo dos trabalhos do grupo do «Integralismo Lusitano», orientado pelo talentoso nacionalista Dr. António Sardinha, que em 1914 lançara a publicação da revista «Nação Portuguesa», onde as mentiras da soberania popular, da democracia, etc. haviam sido combatidas com extraordinário vigor.

Folhear o “Compêndio de História de Portugal” de António Gonçalves Matoso, pai de José Mattoso e formatador historiográfico de quem cresceu e estudou no Estado Novo, permite que, a cada passo ou a cada parágrafo, nos apercebamos desta realidade de tantos tempos e lugares: a instrumentalização ideológica do passado. Oito páginas chegavam para enegrecer convenientemente esse período entre 1910 e 1926, ou seja, retratando-o como o beco sem saída que levou à messiânica “Revolução nacional” do 28 de Maio e, numa lógica e milagrosa sequência, à ascensão do “Senhor Dr. Oliveira Salazar”:

Graças ao Estado Novo, Portugal voltou a conquistar o seu prestígio no mundo. E êste prestígio manter-se-á para glória eterna de Portugal, porque «por tôda a parte», no dizer de Salazar, «o orgulho de ser português remoça o sangue dos portugueses de hoje e permite repousem tranqüilas no túmulo as cinzas heróicas dos portugueses de ontem».

O condicionamento das tenras mentes dos estudantes liceais desses tempos vê-se por toda a parte. Não apenas nas questões políticas, de que é paradigma a forma como é tratada a revolução liberal de 1820 e como, nas entrelinhas, se exalta o império e reprime a prática parlamentarista (veja-se o que é dito de Manuel Fernandes Tomás: “A acção que teve nas Côrtes Constituintes, a sua política idealista e exaltada, sobretudo em relação ao Brasil, foi contrária aos interêsses nacionais e teve as conseqüências a que nos referimos no texto”), mas também na salvaguarda da sociedade patriarcal, até quando toca a tecer encómios à pouco aprazível D. Carlota Joaquina, só porque foi uma força contrária ao Liberalismo, promovendo as golpadas do filho D. Miguel: “Sentia em si sobeja virilidade para ser ela o Rei. A natureza, de facto, enganou-se, fazendo com tal alma desta filha dos Bourbons uma mulher ou, antes, lhe foi o fado supinamente inclemente, reduzindo-a à inação e à impotência quando a dotava para querer e dominar, ver e resolver por si, para ser uma Isabel de Inglaterra ou uma Catarina da Rússia” (Oliveira Lima, citado numa legenda de António G. Matoso; note-se a subliminar exaltação do autoritarismo – “querer e dominar, ver e resolver por si” – patente em vários pontos do compêndio, designadamente nos rasgados elogios ao “vilmente assassinado” Sidónio Pais, apresentado por Matoso como o autor da “primeira tentativa feita, depois da proclamação da República, para instalar em Portugal a ordem e a autoridade”).

O livro é, como tantos outros, um livro de regime. Um documento que, não obstante o rigor geral adequado aos conhecimentos da época, mostra como a história é sempre ferramenta essencial na construção e na solidificação dos totalitarismos. E a partir dali se chega a muitos dos equívocos lugares-comuns que povoam, ainda, o senso comum dos portugueses em matéria de conhecimento histórico, designadamente em relação aos períodos contemporâneos que só depois do 25 de Abril puderam ser convenientemente estudados nas universidades.

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Nota: Corrigi, entretanto, o nome de António G. Matoso, porque não usava o "tt" que tão bem fica à circunspecção beneditina do filho (uma maldadezita, pois José Mattoso, além de superstar académica, é um notável medievista e problematizador da história).

The rain in Spain stays mainly in the plane

Não pára de chover. Tudo o que eu pudesse dizer, nestes dias, a propósito do tempo, mais do que conversa de circunstância seria indecoroso. Há ali um cão desejoso de ir à rua. Despreocupado, claro está, pois não será ele a ter de me secar com toalhas várias no regresso a casa, tentando minimizar o impacto ambiental da extraordinária humidade relativa em cada milímetro quadrado de pêlo. Enfim, chuva, cão, rain, dog... cá está: um momento de genialidade com Tom Waits em palco, interpretando "Rain dogs".

Tino

Chegaram-me às mãos os escritos de um homem pequeno que sempre julgou ser grande, senhor de uma vaidade serôdia que o ocaso cognitivo vai agora acentuando. O que ele fez, activa e, sobretudo, passivamente, é o verdadeiro rosto de uma vida que não aparece em mil exemplares de patrocínio autárquico. Algo que deixou de me entristecer há muito, essa pusilanimidade bajuladora, assente numa absoluta abdicação de princípios para segurar parcos privilégios, entretanto caducados sem honra nem glória.

Vamos lá ver se isto ainda funciona...

Menezes demite-se, num choradinho tremolo em modo menor, fazendo-se à vaga de fundo que o reconduza ao poleiro. Nos blogues, vejo as primeiras reacções de indignação stacatto, atacando os que lhe minaram a liderança. Que espécie esta, a humana, que inventou a classe política para a conduzir...

TRICAMPEÕES


Simples como isto: mais um.

41

Hoje não acordei com o teu telefonema, querida Mãe, nem tive os beijos dos quarenta aniversários que estão para trás. Visitei-te pela manhã, onde te deixámos, e fiz votos para que saiba manter-me digno, num mundo cuja abundância de maldade nunca terás, sequer, imaginado.




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