A criação do mundo


Antes de Abril

O descrédito do parlamentarismo, inaugurado em Portugal com a revolução de 1820, estava pràticamente feito, pelos resultados a que conduzira o País. No campo doutrinário também a sua condenação há muito se realizara, mercê sobretudo dos trabalhos do grupo do «Integralismo Lusitano», orientado pelo talentoso nacionalista Dr. António Sardinha, que em 1914 lançara a publicação da revista «Nação Portuguesa», onde as mentiras da soberania popular, da democracia, etc. haviam sido combatidas com extraordinário vigor.

Folhear o “Compêndio de História de Portugal” de António Gonçalves Matoso, pai de José Mattoso e formatador historiográfico de quem cresceu e estudou no Estado Novo, permite que, a cada passo ou a cada parágrafo, nos apercebamos desta realidade de tantos tempos e lugares: a instrumentalização ideológica do passado. Oito páginas chegavam para enegrecer convenientemente esse período entre 1910 e 1926, ou seja, retratando-o como o beco sem saída que levou à messiânica “Revolução nacional” do 28 de Maio e, numa lógica e milagrosa sequência, à ascensão do “Senhor Dr. Oliveira Salazar”:

Graças ao Estado Novo, Portugal voltou a conquistar o seu prestígio no mundo. E êste prestígio manter-se-á para glória eterna de Portugal, porque «por tôda a parte», no dizer de Salazar, «o orgulho de ser português remoça o sangue dos portugueses de hoje e permite repousem tranqüilas no túmulo as cinzas heróicas dos portugueses de ontem».

O condicionamento das tenras mentes dos estudantes liceais desses tempos vê-se por toda a parte. Não apenas nas questões políticas, de que é paradigma a forma como é tratada a revolução liberal de 1820 e como, nas entrelinhas, se exalta o império e reprime a prática parlamentarista (veja-se o que é dito de Manuel Fernandes Tomás: “A acção que teve nas Côrtes Constituintes, a sua política idealista e exaltada, sobretudo em relação ao Brasil, foi contrária aos interêsses nacionais e teve as conseqüências a que nos referimos no texto”), mas também na salvaguarda da sociedade patriarcal, até quando toca a tecer encómios à pouco aprazível D. Carlota Joaquina, só porque foi uma força contrária ao Liberalismo, promovendo as golpadas do filho D. Miguel: “Sentia em si sobeja virilidade para ser ela o Rei. A natureza, de facto, enganou-se, fazendo com tal alma desta filha dos Bourbons uma mulher ou, antes, lhe foi o fado supinamente inclemente, reduzindo-a à inação e à impotência quando a dotava para querer e dominar, ver e resolver por si, para ser uma Isabel de Inglaterra ou uma Catarina da Rússia” (Oliveira Lima, citado numa legenda de António G. Matoso; note-se a subliminar exaltação do autoritarismo – “querer e dominar, ver e resolver por si” – patente em vários pontos do compêndio, designadamente nos rasgados elogios ao “vilmente assassinado” Sidónio Pais, apresentado por Matoso como o autor da “primeira tentativa feita, depois da proclamação da República, para instalar em Portugal a ordem e a autoridade”).

O livro é, como tantos outros, um livro de regime. Um documento que, não obstante o rigor geral adequado aos conhecimentos da época, mostra como a história é sempre ferramenta essencial na construção e na solidificação dos totalitarismos. E a partir dali se chega a muitos dos equívocos lugares-comuns que povoam, ainda, o senso comum dos portugueses em matéria de conhecimento histórico, designadamente em relação aos períodos contemporâneos que só depois do 25 de Abril puderam ser convenientemente estudados nas universidades.

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Nota: Corrigi, entretanto, o nome de António G. Matoso, porque não usava o "tt" que tão bem fica à circunspecção beneditina do filho (uma maldadezita, pois José Mattoso, além de superstar académica, é um notável medievista e problematizador da história).

1 Responses to “Antes de Abril”

  1. # Anonymous Anónimo

    Caro POS, estamos em sintonia de pensamento!
    Como nos meus tempos de faculdade o tema de estudo (Arquitectura) não aprofundava muito a vertente histórica sob o ponto de vista da História enquanto ciência social, aproveito os dias do ano em que se comemora algum episódio “socialmente distinto” para visitar alguma literatura da época. Esta semana seleccionei o “Labirinto da Saudade”, de Eduardo Lourenço, cujo prefácio foi escrito no 25 de Abril de há 30 anos atrás, e que contém, precisamente, como diz o autor, “um discurso crítico sobre as imagens que de nós mesmos temos forjado”.  

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