A criação do mundo


O despovoamento e a escola

Quis o acaso (na verdade, a decisão foi minha, mas é para estas invocações que o acaso serve) pôr-me a residir, passados tantos anos, junto ao liceu que frequentei quando disso era tempo. Circundo-o todos os dias, enquanto levo o cão em passeios higiénicos, todos os dias contacto com os adolescentes que por lá andam agora, sejam os que fumam e entopem os passeios, sejam os que gastam no supermercado, em guloseimas, o dinheiro do almoço. E vejo-os diferentes do que éramos, muito provavelmente por eu mesmo ser já uma carcaça empedernida.

Mas não é só isso.

Do que de há vinte e tal anos me salta agora para o cadinho das memórias, extraio a ideia de que havia de tudo na minha escola. Gente muito rica, gente muito pobre e tudo o que entre uns e outros houvesse, lá estaria eu também nesse saco de gatos da classe média. Convivíamos sem grandes problemas. Havia grupinhos de toda a sorte, evidentemente, mas todos jogavam à bola uns com os outros, todos se sentavam ao lado uns dos outros na sala de aulas, uns e outros seguiam os percursos que podiam, mas já não era idade em que o aproveitamento ou a falta dele causassem atitudes de desprezo entre colegas. Resumindo, toda a sociedade estava projectada em cada turma e, sem que os conflitos ou a indisciplina estivessem ausentes, havia harmonia naquilo. Agora, quando ouço os meninos e as meninas a falar, vejo que são todos broncos. E não há aqui, evidentemente, qualquer problema geracional, embora muitos casos possam derivar dos pais que se desobrigam, delegando na televisão, na playstation e nos professores todas as tarefas educativas. Sempre houve burros, e não há promoção artificial do sucesso escolar que esconda isso.

Parece-me que a real causa deste panorama, que ao lado de todos os doutos analistas tem passado, é o fenómeno de despovoamento da cidade, que, passo a passo, vai ficando reservada aos que têm muito, centrados em zonas exclusivas, e aos que têm muito pouco, espalhados pelo casario degradado e pelos bairros de habitação social. A dita classe média vai transitando para a periferia, os abastados põem facilmente as criancinhas no ensino particular, a escola pública vai ficando reservada aos que crescem com pouco e sem horizontes, ainda por cima privados da tal harmonia que representava a presença na escola do todo social. Tornando-se maioritários e dominantes, esses grupos constituem-se como exemplo e tornam-se imunes a qualquer estímulo que do ensino possa advir.

Se os problemas em ambiente escolar foram claramente agravados pela massificação do ensino, com a qual ainda nenhum governo soube lidar competentemente, esta questão do despovoamento nada tem de irrelevante e é, tenho-o por certo, um importante catalizador da rebeldia, da indisciplina e da ausência de rumos dos jovens. Daí que escolas que antes trabalhavam bem sejam, agora, aparentes becos sem saída. Não se pode pensar a escola sem a enquadrar na envolvente social, ou, melhor, sem equacionar de onde vêm aqueles que a escola serve. E é, portanto, errado pensar a escola sem questionar a especulação imobiliária que afasta as pessoas da cidade, os maus serviços municipais que afastam as pessoas da cidade (a sujidade, no Porto, agrava-se sistematicamente desde o afastamento do vereador Oliveira Dias) ou a insegurança que afasta as pessoas da cidade (e nasceram as cidades de sentimentos gregários, entre os quais a garantia de segurança talvez fosse o mais importante). E é errado escamotear a necessidade de pôr um travão aos factores que permitem o crescimento desenfreado das periferias, em especial a circunstância de a construção civil ser a cornucópia de onde os poderes autárquicos vão extraindo euros e votos (uma relação directa, não falo aqui de corrupção).

Enfim, tenho agora mais que fazer, mas tive de vir aqui desabafar. É que, na televisão, a propósito do caso da escola Carolina Michaëlis, estão a debater os telemóveis. Sim, os telemóveis!...

A alegre podridão

O filme que se segue é chocante. Deveria estar a ser devidamente investigado pelas autoridades policiais, mas também deveria ser um aguilhão ferrado nas consciências de todos aqueles que, ao longo dos últimos anos, têm levado o sistema educativo português à total degradação. Admito que haja mediocridade entre os professores, atendendo a que até ao Governo a mediocridade chega, mas incomoda-me sempre que alguém vê os docentes como uma corporação resistente ao progresso, transformando em leis gerais as experiências que viveram ou as experiências que julgam que os filhos vivem, porque os filhos têm sempre razão. Sempre tenho dito que o problema de educação, muito mais do que na escola, está no embrutecimento geral da sociedade, potenciado pelo consumismo, pela iliteracia, pela televisão aparvalhada ou pelo crédito malparado. Os meninos e meninas que aqui se divertem à custa de uma professora, sujeita a ser humilhada no local de trabalho (ou porque gosta de ensinar ou porque tem de se sujeitar a ser mal paga, em relação à responsabilidade social que se lhe atribui), não estão integrados em projectos especiais de reinserção. Estão perfeitamente inseridos na sociedade, são a parte sombria do futuro que aí vem (porque - concedam-me algum bom senso - as crianças e jovens não são todos assim). E estão a ser promovidos pelas políticas de educação baseadas no facilitismo e no fingimento, deste Governo e dos outros que o precederam, até porque sou levado a acreditar que a doença não está nos políticos, mas nessa chusma burocrática das ciências da educação, continuamente activa e indiferente ao vaivém de ministros a que a democracia obriga. Os professores merecem ser respeitados, evidentemente, mas será mais importante apoiá-los. Não em manifestações pontuais ou em acções simbólicas de protesto, mas restituindo-lhes, de uma vez por todas, a autoridade técnica e moral que lhes tem sido roubada pela escória que vai subsistindo entre pedagogos e políticos.



(via Blasfémias)

Vamos aprender a falar com os senhores políticos

Ora, sendo o jornalismo de política, essencialmente, feito de um vaivém de recados, de acusações e réplicas, de ocos ecos de guerrilha palavrosa, a entrevista que o líder do PSD deu, há dias, à RTP veio mesmo a calhar para inventar notícias. A frase mais bombástica, ao que parece, foi dirigida a António Capucho, o qual, segundo Luís Filipe Menezes, "aligeirou responsabilidades". Na rádio, uma jornalista entusiástica repetia a frase - "aligeirou responsabilidades" - para introduzir o contraditório feito pelo presidente da Câmara de Cascais. Dá que pensar. Como se tornam as responsabilidades mais ligeiras? Alimentam-se a folhas de alface e iogurtes light? Ou será que Menezes, afinal, ouviu da boca de alguém a expressão "alijou responsabilidades", decidindo, com valentia, trocar a correcção pela asneira que lhe pareceu mais familiar?...

Cesse tudo o que a musa antiga canta

_ Nome?

_ Carolina Salgado.

_ Profissão?

_ Escritora.

Rezam as crónicas que assim se apresentou a senhora, hoje, ao tribunal de Gondomar. A desfaçatez não impressiona nem tem interesse por aí além, a não ser por me ter lembrado uma outra apresentação, creio que imaginária, ouvida, em tempos, salvo erro, num programa de rádio:

_ Nome?

_ Maria Alice.

_ Profissão?

_ Lili Caneças.

Se eu fosse a Edite Estrela (safa!...)

Excelentíssimos camaradas jornalistas e outros utilizadores da palavra escrita que eventualmente por aqui passem, de uma vez por todas usem a cabeça para pensar em mais do que manigâncias, pois o uso correcto da língua é a verdadeira arma de que dispõem para obter alguma respeitabilidade:

Frases como "iludir a crise" são disparatadas, atendendo a que a crise não tem consciência própria nem expectativas que possam ser goradas. Quem assim escreve está iludido por obra da prestidigitação semântica que é a consagração do erro pelo uso (veja-se a transformação da expressão latina "pari passu", i.e. "a ritmo igual", em "a par e passo", que parece fazer todo o sentido, mas nem por isso). Portanto, consultem os dicionários, em vez de perguntar para o lado, e percebam que o correcto será "eludir a crise".

Dennis Pennis



Não sei por que me lembrei do Dennis Pennis, o repórter que o actor britânico Paul Kaye inventou para importunar as celebridades. Procurei-o no YouTube e aqui está. Só a pergunta final a Demi Moore justifica que se veja com atenção. De resto, fica a figura de usrso de um Tom Hanks rodeado de gorilas, a falta de elasticidade mental de Mel Gibson e o fair-play de Pierce Brosnan.

Reconciliemo-nos, então

E dizem os monárquicos que só um rei promoverá a reconciliação nacional!... Atendendo a que não estamos em guerra civil, não se percebe que desavenças tão profundas são essas, além das que salutarmente povoam um regime pluralista. (suspiro!...)

Aqui d'el rey

Finge-se, na televisão, um debate que determinará prós e contras da república e da monarquia. Do mais oco - ou superficial, condescendamos - que tenho visto. Não por falta de gabarito dos intervenientes, mas porque, sendo o debate descabido, atendendo a que não se vive uma crise dos valores republicanos, o brilhantismo está de férias na Papuásia. Curioso será perceber o ascendente mediático conseguido pelo pequeno lobby monárquico, que tenta capitalizar o relançamento de uma questão anacrónica.




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