Volto a pegar no compêndio de António G. Matoso e abro-o ao acaso. É um livro em que não há páginas inocentes. E, se pensarmos que, durante anos e anos, era esse o único instrumento de trabalho dos não muitos que chegavam ao sexto ano dos liceus, podemos ter uma vaga ideia do papel que a escola teve na solidificação de preconceitos e no estímulo dado a ódios congénitos. O anti-semitismo é coisa bem antiga, claro, mas devemos ter em conta que o compêndio foi publicado originalmente em 1938 (tenho em mãos uma edição de 1942), num contexto europeu que não terei aqui de descrever. Ora, foi nas páginas referentes à expulsão dos judeus em 1497-98, decretada por el-rey D. Manuel, que abri o livro. E as considerações introdutórias compelem-nos, evidentemente, a fazer juízos de intenções:
"Os judeus, apegados às suas velhas crenças, cônscios da superioridade da
sua raça, confiados na protecção infinita do seu Deus, orgulhosos da sua
ascendência superior, eram um elemento estranho no meio dos outros povos.
Pretendiam dominar pelo seu carácter arrogante; manifestavam em tudo o seu
proselitismo ardente, a sua ganância insatisfeita. Superiores, sob o ponto de
vista intelectual, depressa conseguiam situações vantajosas, perante o espanto
dos naturais, que não ousavam passar duma mediania trabalhosa e difícil."
Poderia dar mais exemplos, mas vou ficando por aí. É evidente que os judeus da Sefarad (a Península Ibérica), ou seja, os sefarditas (ou os sefardim, se usarmos um plural hebraico) eram extraordinariamente letrados, por contraste com a boçalidade que imperava no Ocidente cristão, onde os próprios padres (não falo das elites eclesiásticas regulares ou seculares), guardiães locais do livro, eram semianalfabetos cuja "latinice" se resumia à reprodução de arengas memorizadas e corrompidas. Porém, os estudos mostram que em poucos lugares como em Portugal os judeus faziam parte de um todo. Apesar da vivência comunitária e das redes herméticas de negócio (os contactos internacionais entre judeus fizeram deles precursores do mercado mundial), eram infinitamente mais abertos ao outro do que os ashkenazy, ou seja (e perdoando-se a generalização), os judeus mais concentrados na Europa oriental, esses sim ortodoxos e fechados. Essa do "proselitismo ardente" não lembra ao diabo, sendo evidente que os judeus, enquanto "povo eleito", embora aceitem a conversão, não andam para aí a arrebanhar crentes (judeu é filho de mãe judia, simples como isso), mas o mais impressionante é o tom acintoso: dizer, no apogeu dos nacionalismos exaltadores da raça (seja lá isso o que for), que os judeus eram "cônscios da superioridade da sua raça" não levaria, decerto, a bons resultados. Tal como o uso do possessivo em "seu Deus", uma imbecilidade recorrente, atendendo a que as religiões do livro entroncam todas em Abraão, ou seja, no Deus de Abraão, sempre o mesmo, indiferente a que o tratem por Deus, Adonai, Javé, Alá ou o que quer que seja.
Não é falso que houvesse ódio aos judeus, na Idade Média como sempre. Se havia pestes, por exemplo, eram acusados de terem envenenado os poços. Porquê? As epidemias não grassavam nas comunidades judaicas, apenas porque, nos seguimento das normas sanitárias expressas pela Tora ou pela tradição talmúdica, eram infinitamente mais limpos do que os restantes. O que há aqui a reter é a forma como o nacionalismo do século XX estimulou estes rancores absurdos. A religião é apresentada como fundamento da nacionalidade (sabiam lá o que era nacionalidade, na Idade Média!...), pelo que as perseguições (a referência de Matoso é António Sardinha, está tudo dito) resultaram da "irredutibilidade dos judeus e dos cristãos novos em se adaptarem à vida nacional".
Só por pudor científico Matoso não terá usado a rebuscada fórmula dos "assassinos de Cristo". Mas não pode deixar de espantar o branqueamento da Inquisição (pouco estudada, ao tempo em que este manual foi produzido): aponta-se que o Santo Ofício não terá sido tão rigoroso como isso, por "só" terem sido executadas na fogueira, 1454 pessoas, das 24 522 julgadas entre 1536 e 1732 (não sei onde foi ele buscar estes números, não os entendam como verdadeiros), esquecendo todo o clima persecutório e ignorando que, mais do que acender umas fogueiras para gáudio popular, o que os inquisidores queriam era arrestar os bens dos cristãos novos, algo que fizeram com enorme eficácia.
Enfim, tudo isto para dizer que as histórias mal contadas - propositadamente mal contadas, claro - resultam em mentalidades mal formadas e feridas mal saradas. E esses são males que muito custam a curar.
"Os judeus, apegados às suas velhas crenças, cônscios da superioridade da
sua raça, confiados na protecção infinita do seu Deus, orgulhosos da sua
ascendência superior, eram um elemento estranho no meio dos outros povos.
Pretendiam dominar pelo seu carácter arrogante; manifestavam em tudo o seu
proselitismo ardente, a sua ganância insatisfeita. Superiores, sob o ponto de
vista intelectual, depressa conseguiam situações vantajosas, perante o espanto
dos naturais, que não ousavam passar duma mediania trabalhosa e difícil."
Poderia dar mais exemplos, mas vou ficando por aí. É evidente que os judeus da Sefarad (a Península Ibérica), ou seja, os sefarditas (ou os sefardim, se usarmos um plural hebraico) eram extraordinariamente letrados, por contraste com a boçalidade que imperava no Ocidente cristão, onde os próprios padres (não falo das elites eclesiásticas regulares ou seculares), guardiães locais do livro, eram semianalfabetos cuja "latinice" se resumia à reprodução de arengas memorizadas e corrompidas. Porém, os estudos mostram que em poucos lugares como em Portugal os judeus faziam parte de um todo. Apesar da vivência comunitária e das redes herméticas de negócio (os contactos internacionais entre judeus fizeram deles precursores do mercado mundial), eram infinitamente mais abertos ao outro do que os ashkenazy, ou seja (e perdoando-se a generalização), os judeus mais concentrados na Europa oriental, esses sim ortodoxos e fechados. Essa do "proselitismo ardente" não lembra ao diabo, sendo evidente que os judeus, enquanto "povo eleito", embora aceitem a conversão, não andam para aí a arrebanhar crentes (judeu é filho de mãe judia, simples como isso), mas o mais impressionante é o tom acintoso: dizer, no apogeu dos nacionalismos exaltadores da raça (seja lá isso o que for), que os judeus eram "cônscios da superioridade da sua raça" não levaria, decerto, a bons resultados. Tal como o uso do possessivo em "seu Deus", uma imbecilidade recorrente, atendendo a que as religiões do livro entroncam todas em Abraão, ou seja, no Deus de Abraão, sempre o mesmo, indiferente a que o tratem por Deus, Adonai, Javé, Alá ou o que quer que seja.
Não é falso que houvesse ódio aos judeus, na Idade Média como sempre. Se havia pestes, por exemplo, eram acusados de terem envenenado os poços. Porquê? As epidemias não grassavam nas comunidades judaicas, apenas porque, nos seguimento das normas sanitárias expressas pela Tora ou pela tradição talmúdica, eram infinitamente mais limpos do que os restantes. O que há aqui a reter é a forma como o nacionalismo do século XX estimulou estes rancores absurdos. A religião é apresentada como fundamento da nacionalidade (sabiam lá o que era nacionalidade, na Idade Média!...), pelo que as perseguições (a referência de Matoso é António Sardinha, está tudo dito) resultaram da "irredutibilidade dos judeus e dos cristãos novos em se adaptarem à vida nacional".
Só por pudor científico Matoso não terá usado a rebuscada fórmula dos "assassinos de Cristo". Mas não pode deixar de espantar o branqueamento da Inquisição (pouco estudada, ao tempo em que este manual foi produzido): aponta-se que o Santo Ofício não terá sido tão rigoroso como isso, por "só" terem sido executadas na fogueira, 1454 pessoas, das 24 522 julgadas entre 1536 e 1732 (não sei onde foi ele buscar estes números, não os entendam como verdadeiros), esquecendo todo o clima persecutório e ignorando que, mais do que acender umas fogueiras para gáudio popular, o que os inquisidores queriam era arrestar os bens dos cristãos novos, algo que fizeram com enorme eficácia.
Enfim, tudo isto para dizer que as histórias mal contadas - propositadamente mal contadas, claro - resultam em mentalidades mal formadas e feridas mal saradas. E esses são males que muito custam a curar.
Olá! :-) Hoje, na minha visita diária aqui ao estabelecimento, li este post ao Sr. Azevedo, um amigo meu de idade avançada (perto dos 90 anos) que tem algumas dificuldades de visão. O comentário dele foi delicioso:
- “Muito bem! Excelente! É isso mesmo! Que idade tem o autor?”
[Eu] – Por um post que está aqui, 41.
- “E dizia anteontem o Cavaco Silva que os jovens de hoje não sabem o que foi o 25 de Abril! Interessa, isso sim, saber bem o que está para trás!”
Muito me honra o Sr. Azevedo. Sendo eu, para ele, um garoto de berço, já tenho cabelos brancos em demasia para o gosto dos jovens a que se referia o Cavaco. Na realidade, o panorama geral nas faixas etárias a que o PR aludiu é desolador.
Pois não é que com isso das histórias propositadamente mal contadas consegui entreter-me todo o Serão de Domingo! Curiosa, lá fui eu espreitar as histórias mal contadas na minha (e todos os meus colegas da altura) formação básica (escola primária, ciclo e liceu – eu ainda utilizo esta terminologia). Senti-me uma verdadeira arqueóloga no meio dos livros e outros vestígios!
A História de Portugal, um desastre: faltaram imensos capítulos da História lusa – incluindo o capítulo relatado no post e a “parte obscura” do período pós-25 de Abril –, inclusive tive uma professora que nos deu uma tabela com os “Reis bons” e os “Reis maus” por ela seleccionados (para somar aos “Reis magos”, estes bem mais divertidos)! Como foi isso possível?!! A Português, uma verdadeira tragédia: por ser de “Artes” todo o programa desta disciplina foi “adaptado” aos “menos aptos para as Letras”! Tal como a Matemática, a Geografia, a Biologia, a Química, o Francês... Enfim, foi tudo (ou quase tudo) adaptado!
Resultado, acabei a minha formação básica a saber menos sobre História, Português, Matemática, etc., do que os meus pais quando acabaram a deles! Ainda bem que há quem crie “mundos” como este para eu poder ir colmatando as falhas... :-)