que forjaram um novo Portugal
Não parou a água de correr sob as pontes desde aquele 19 de Novembro, dois séculos exactos hoje cumpridos, em que as tropas do general Jean-Andoche Junot, futuro duque de Abrantes de cognome “A Tempestade”, cruzaram a fronteira para terras lusas. Terá começado a desenhar-se aí o Portugal que hoje somos, tombado, reerguido ou reconstruído entre guerras, revoluções e impérios perdidos. Da chegada dos franceses nasceu a orfandade do reino, nesta cresceram os ideais do Liberalismo que tardaria em triunfar de facto. O tempo da Guerra Peninsular, aqui marcado por três distintas invasões, foi feito de elementos paradoxais – afrancesados e resistentes; liberais embrionários e vetustas mentalidades de Antigo Regime... – que entrechocariam longamente após a queda definitiva de Napoleão Bonaparte.
Nada em História pode resumir-se a confrontos entre bons e maus, mesmo que a isso induza a iconografia com que nos identificamos. O leão esmagou a águia e Portugal ficou salvo? Ou terá o felídeo britânico significado uma outra forma de opressão que nos esmagou irremediavelmente? Talvez a realidade, se a ela nos atrevermos a almejar, mostre o fado de um país que, mesmo nos momentos de esplendor, sempre alguma fraqueza sentiu entre os poderosos que se erguiam.
Nesse dia diluviano de 1807, Junot cruzou a fronteira beirã, decidido a conduzir um exército faminto à capital do reino. A Lisboa chegou ao cabo de 11 dias, não a tempo de impedir a partida da Corte para o Brasil, inaudita e precipitada (embora prevista e planeada) travessia do Atlântico encetada um dia antes. Mais do que a crueldade das tropas, do que as pilhagens e os desastres, mais que o fragor das batalhas ou do que a sanha do vulgo espezinhado, terá sido essa deslocalização da capital o facto, decorrente da guerra, que mais perenes e radicais mudanças deixou.
A decisão do príncipe regente D. João, posteriormente sexto monarca do nome e sétimo da casa de Bragança, é vista por muitos como um gesto de cobardia, triste corolário da proverbial indecisão do filho de D. Maria I (entretanto endoidecida) que não nascera para governar. Mas não havia novidade na indecisão posicional deste nosso país quando necessário se tornava tomar partido entre franceses e ingleses, assim sucedera com D. Fernando, por exemplo, aquando da medieva Guerra dos Cem Anos. A ida para o Brasil, talvez a única forma de impedir a aniquilação disto que somos, foi uma inexoravelmente submissa forma de aliança com os ingleses, que, mais do que garantir a defesa contra o invasor – Arthur Wellesley, depois duque de Wellington, é figura incontornável –, assumiram a gestão deste rectângulo e invadiram comercialmente o Brasil, abrindo caminho para a independência da colónia, em 1822, que cortou pela raiz o que até então havia sido a realidade económica portuguesa.
Aos olhos dos franceses de hoje, Portugal não passa de uma nota de rodapé, ou pouco mais, nos capítulos consagrados às guerras hispânicas. Por cá, todavia, as invasões comandadas por Junot, Soult (1809) e Masséna (1810) deixaram marcas que perduram. Na linguagem (“Ir para o Maneta” é expressão comum, inspirada no sangrento general Louis-Henry Loison), nos rituais (há ainda quem acenda velas no baixo-relevo alusivo ao desastre da Ponte das Barcas, na Ribeira portuense), nas histórias de família (aqui e ali, sobretudo em meios rurais, há casas em que se mostram vestígios da passagem dos invasores), no património (pilhado, salvo ou erguido em evocação desses anos)... Em tudo, até na forma diferente como se dizem as horas em pontos distintos do país.
Jornal de Notícias, 19 de Novembro de 2007
Etiquetas: Guerra peninsular, JN
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