A criação do mundo


20 de Janeiro

Quartanistas de Letras, Coimbra, 1946

Hoje farias anos, querido Pai. Já não seriam poucos. Mesmo que não tivesses partido tão cedo, provavelmente assinalá-los-ia, de igual modo, nesta ausência de ti a que nunca soube habituar-me completamente. Suponho que não há mal nisso, apenas um sinal do meu carinho, agora perdido na confusão de um limbo de que aos poucos sairá, porque aos poucos nos molda esse paradoxo de resignação e inconformismo que é o tempo. Pela primeira vez, não estou com a nossa querida Nelinha neste dia. E tenho muita pena de a minha fé não ser feita de certezas, o que talvez a transforme numa espécie de não-fé na qual, enfim, também sou incapaz de acreditar totalmente. Seria bom saber que a recebeste nalgum espaço de serenidade, onde hoje brindariam a nós, que aqui persistimos, cumprindo a estranha ordem natural das coisas. Sei-vos juntos, pelo menos, nesse fortificado recanto do meu coração, até que também ele se cale. E, por via das dúvidas, aqui brindo a vós. Será uma maldade minha, talvez, pôr aqui a caricatura do teu livro de curso. Lembro-me que gostavas pouco dela e, de facto, causam-me estranheza aqueles cifrões. Coisas de miúdos, não saberias então, talvez, que a tua riqueza seria altruísta, infinitamente mais humana do que fiduciária. Mais justa. Mais perene. É a essa riqueza, a esse exemplo que em mim tento reconstruir todos os dias, que ergo a taça. Parabéns.

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