onde o velho ia sendo esquecido
Sempre as anedotas são facilmente assimiladas. Sabe-se que o senhor D. João VI, enquanto esteve nos brasis, viu os médicos da Corte prescreverem-lhe banhos de mar, para alívio de alguma maleita agora incerta. Horrorizado com a água ou com a grandeza do oceano, era transportado numa liteira com grades, vestido, e mergulhado rapidamente pelos escravos que o carregavam. Episódios desses, além de criarem o estereótipo patético do monarca que fugiu em 1807, com Junot nos calcanhares, escondem a complexa importância dessa deslocalização para o Rio de Janeiro da capital do império.
Assim não pensam os brasileiros, que vêem no “Clemente” uma espécie de pai da pátria, pois a transferência da Corte para além-Atlântico foi a chave para conservar a unidade territorial de uma vastíssima colónia, até então nada mais do que uma fonte de alguns recursos e um mercado protegido para a metrópole. A partir de 2008, o Brasil pôde progredir, não apenas no plano da prosperidade material mas enquanto conceito, e assim definhou, também, o projecto de um grande império português baseado na América do Sul.
Porque, às vezes, é legítimo simplificar o complexo, há que insistir na circunstância de o príncipe regente, entalado entre dois enormes poderes que o transcendiam, ter sido empurrado para a água pelos ingleses, que pretendiam não apenas o acesso aos portos de Portugal, para combater em terra as tropas napoleónicas (no mar, Trafalgar selara em definitivo a hegemonia britânica). Em pleno “take-off” prematuro da industrialização, jogaram aqui a cartada decisiva para invadir, comercialmente falando, um colosso que viam em mãos erradas.
Sebastião José de Carvalho e Melo formalizara um inabalável sistema proteccionista em torno da América portuguesa: todo o trato tinha de ser feito com a metrópole e a industrialização das colónias era travada, transformando os que ali viviam e tentavam prosperar em portugueses de segunda. Ora, além do mal-estar que isso provocava na colónia, impedia os ingleses de pôr o pé em ramo verde, cenário radicalmente alterado com este processo.
Desembarcado em Salvador a 22 de Janeiro de 1808, o príncipe regente apenas esperou uma semana para outorgar a carta régia de “abertura dos portos às nações amigas”. Ora, as ditas nações amigas eram uma e uma só, que rapidamente passou a dominar o trato com a colónia. Até na metrópole, quando já cá andavam tropas britânicas, a política de terra queimada de Arthur Wellesley, destinada a dificultar a vida aos exércitos napoleónicos, passou por destruir, “en passant”, diversas estruturas da proto-indústria lusa, designadamente de algumas companhias privilegiadas do pombalismo.
Lá longe, a realeza acostumava-se ao calor e a todos os encantos dos trópicos, excepção feita a D. Carlota Joaquina, a sempre desavinda mulher do regente, que se via no desterro. À rainha, a demencial D. Maria, pouco terá importado ter passado os últimos anos da vida num território tão distante dos seus tempos de glória. Mas D. João e o herdeiro, D. Pedro, terão sido os primeiros brasileiros do coração.
Ao Rio de Janeiro, até então pouco mais do que uma aldeola, a Corte e a abertura internacional fizeram chegar a “civilização”, criaram um novo reino que fez esquecer o velho Portugal. Ergueram palácios, fizeram festas, construíram um esplêndido jardim botânico, enquanto por cá se vivia no medo e na revolta. Uma revolta que, como noutra ocasião se revelará, foi mais do povo do que das elites, mas também, contrariamente ao que se possa julgar, mais pela posse da terra do que por um fervor pátrio que, afinal, não era assim tão ardente.
Jornal de Notícias, 4 de Dezembro de 2007
Etiquetas: Guerra peninsular, JN
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