e viver encurralado entre tudo
Segundo na linha de sucessão a D. Maria I, o infante João não nascera destinado ao trono, mas à ociosa vida de uma realeza que restabelecera a ordem cerceada por Pombal. Só que acabou por governar aos 25 anos, não pela natural lei da vida, mas pela loucura que da rainha se apossou. Os retratos mostram-no grotesco, acompanham-no adjectivos pouco edificantes – timorato, hesitante, medroso -, atribuem-se-lhe modos boçais. Afinal, com os franceses à vista, tomou a única opção possível para manter Portugal numa espécie de independência.
Senhor de um reino sem poder e encurralado entre as forças que se defrontavam na Europa, lançou-se, talvez transido de pavor, na maior operação alguma vez montada: a viagem da Corte para o Brasil, onde veio a implantar a capital do reino e, nove anos depois, a ser aclamado rei. Voltaria D. João VI à metrópole em 1821, novamente contrariado e prestes a ser despido de poderes pela Constituição vintista. Certo é que, se o príncipe regente não tivesse, como alguns ligeiramente interpretarão, fugido com o rabo entre as pernas, a realeza teria sido capturada por Junot, e o reino retalhado e integrado no império napoleónico.
Um acumular de circunstâncias desfavoráveis, enfim, venceu as proverbiais incertezas do príncipe regente. Quando se soube que Bonaparte ordenara a invasão de Portugal e a captura da família real, a opção pela ida para o Brasil, já equacionada como recurso de emergência diversas vezes desde a crise dinástica quinhentista (e reforçada ao longo do século XVIII, com a crescente importância da colónia), tornou-se inevitável. Em 1801, o conflito conhecido por Guerra das Laranjas foi um primeiro sinal da incapacidade de defesa lusa e de que o reino não sobreviveria sem recurso à aliança com Inglaterra, tivesse essa opção os custos que tivesse.
Jean-Andoche Junot, que em 1807 comandou a primeira invasão francesa, havia sido, dois anos antes, embaixador em Lisboa, com a missão de pressionar o regente para cumprir o estatuto de neutralidade, travando o acesso de navios ingleses. A pressão aliviou com o empenho do imperador nas campanhas da Europa central e da Rússia, mas com o Bloqueio Continental a vigorar, os franceses, já em 1807, intimaram Portugal a cumprir o que estava decretado.
D. João e os seus conselheiros viveram, então, na corda bamba. A aceitação do ultimato francês reunia mais adeptos, sempre numa tentativa de minimizar danos, mas as perspectivas de retaliação inglesa (em especial se Portugal prendesse súbditos britânicos e lhes arrestasse os bens) eram tremendas, sendo a ocupação da Madeira apenas um princípio. Foram tempos de loucura diplomática, com o regente – em permanente ansiedade – a tentar o equilíbrio entre dois gigantes que o acossavam. Embora a partida para o Brasil estivesse a ser preparada, D. João não apreciava a ideia, e só a terá realmente assimilado sob pressão do embaixador inglês, Lord Strangford, que forçou ao fim da ambiguidade. Quando a invasão se consumou, a soberania portuguesa nada significava para Napoleão. Já não estava em causa o Bloqueio Continental, mas a tomada do reino e a execução do Tratado de Fointanbleu, que determinava a partilha dos despojos territoriais.
Baseada não só na necessidade pragmática, mas na noção teórica de que um grande império nasceria no Brasil, a fuga foi atempadamente calculada. Após a decisão final, demorou apenas três dias a concretizar. Mas não foi preparada na perfeição, e foram atabalhoados os momentos que antecederam a partida, a 29 de Novembro de 1807, para uma viagem que alteraria decisivamente o rumo de Portugal.
Jornal de Notícias, 27 de Novembro de 2007
Etiquetas: Guerra peninsular, JN
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