A criação do mundo


Les envahissements -5

Invasões fizeram abrir os olhos

de um país parado no tempo




Olharmos para uma sequência de eventos no passado, como as invasões francesas, e pensar que a compreendemos ao nomear heróis e batalhas é, muito simplesmente, o mesmo que cingir o retrato do país que hoje somos às tricas noticiáveis com que nos brinda a classe política. Compreender esse Portugal do primeiro quartel de oitocentos é coisa bem mais complexa do que ter presentes os episódios que fazem a história militar. É, na verdade, pensar numa sociedade de Antigo Regime, em que uma enorme maioria rural vivia, de uma ou de outra forma, na servidão que alimentava um punhado de privilegiados.

É mais fácil perceber as elites, porque mais documentadas. Mas, ainda por cima tendo a revolta popular sido preponderante no quadro da Guerra Peninsular, há que ter o cuidado de perceber que isto não era, propriamente, um país de afrancesados contra a aristocracia dominante, que isto não se cingia às subtilezas da diplomacia. Nunca assim é. Qualquer processo revolucionário, antes de cativar as massas, parte de uma elite. No caso, porém, as massas agiram em função do entendimento que tinham do mundo, mais pragmático que patriótico.

Não custa perceber. Se olharmos para um passado recente, isto é, para o país rural do Estado Novo (fechado à inovação e à modernidade) , basta torná-lo mais atrasado e hermético para imaginar o que seria no início do século XIX. Sendo Portugal um sítio onde o fenómeno urbano foi modesto (Vitorino Magalhães Godinho associou a isso o nosso atraso), a sociedade de Antigo Regime que tínhamos (e que ainda não foi integralmente mudada) era essencialmente rural. Na Época Moderna, isto é, no período histórico que vai do fim da Idade Média até às revoluções liberais, nove décimos da população trabalhavam directamente a terra. Se lhes juntarmos os proprietários, os que entravam no negócio das rendas e outros, vemos que quase toda a gente estava ligada à terra. Estima-se que, para alimentar dez pessoas, oito ou nove tinham de trabalhar na agricultura.

Ainda subsiste a ideia de que a terra é a mais fiável e dignificante forma de património. Isso vem na sequência desses tempos e terá sido, quando todos gritavam “vêm aí os franceses!”, a mais premente preocupação. Um português rural pouco se importaria com as hesitações do príncipe regente ou com a debandada da Corte para o Brasil. Mas via o aceso à terra ameaçado.

Num recentemente reeditado ensaio sobre a reacção popular à invasão de Junot (“Ir prò Maneta”, Alêtheia Editores), Vasco Pulido Valente clarifica à partida o assunto: “Os rebeldes portugueses não queriam única ou principalmente destruir o exército do invasor: queriam o domínio do território”. Como sempre sucede nas nossas sociedades, os miseráveis eram maioritários e eram-no de uma forma esmagadora. Mas não podemos pensar que sonhavam com a equidade. Nestas sociedades de privilégios, os privilegiados lutavam para manter a condição e os restantes queriam a ela alcandorar-se. Pelos imbricados meandros de um mundo rentista, os da base da pirâmide trabalhavam desalmadamente para sustentar os que estavam em patamares superiores, assegurando a custo a própria sobrevivência. Mas não veriam além dessa ordem “natural”, e as revoltas – não só contra os invasores, mas também contra os poderosos – não buscavam mudanças de fundo.

Mesmo entre os letrados, as ideias de mudança, antes das invasões, eram incipientes. Porém, com a quantidade de estrangeiros que por cá passaram, trazendo na bagagem livros e ideais, a guerra agitou a pasmaceira. E foi na sequência disso que D. João VI, contrariado, voltou mais tarde do Brasil, para assumir o papel decorativo que lhe haviam reservado os vintistas.

Jornal de Notícias, 18 de Dezembro de 2007

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