A criação do mundo


Dragão impiedoso *

Brinca-se com as crianças, dizendo-se-lhes que, se cavarem um buraco na terra, sempre, sempre, sempre e só parando quando voltarem a ver o céu, estarão na China. Não é verdade, os antípodas de Portugal levariam a que, se algum menino cumprisse tal tarefa, este país à beira-mar plantado ficasse submerso pelas águas de outro oceano, o Pacífico, por mais aberrante que as leis da Física tornem essa ideia. Mas o que se quer transmitir é, apenas, que a China fica muito longe e nada sabemos dela. Ou pouco, mesmo sendo nós dos primeiros europeus que por lá andaram. Sabe-se que são muitos e que o país assusta muita gente. Mais ou menos isso.

Com a aproximação dos Jogos da 29.ª Olimpíada tem sido reforçada a consciência internacional daquilo a que alguns chamam o "perigo amarelo", situação que resulta de factores diversos. Desde sempre, o receio do outro, sendo esse outro o diferente, o desconhecido. Assim o é a China, insondável gigante do Oriente. Mas não é só assim. É o regime de partido único, é o desrespeito pelos direitos humanos, é a emergência acelerada de uma megapotência económica, são os interesses ocidentais e as perversões da globalização que, de novo, vêm à tona…

Nada de surpreendente há no que agora acontece, a uma escala que, por então não se viver na era da comunicação, não sucedeu, por exemplo, com a atribuição do Mundial de futebol, em 1978, à Argentina dos generais e dos "desaparecidos". O desporto das grandes competições é política, e os Jogos Olímpicos são-no mais do que qualquer outro evento. No caso da China, então, os cinco anéis representam uma longa batalha de afirmação no concerto internacional, que atinge agora o auge.

Daniel Cohn-Bendit, rosto da revolta estudantil de Maio de 1968 é, embora alemão, eurodeputado eleito pelos Verdes de França. Nessa condição, no azul anfiteatro de Estrasburgo, classificou de "imundo" o contexto em que Nicolas Sarkozy se deslocará a Pequim, para assistir à cerimónia de abertura dos Jogos. Antes o único chefe de Estado europeu a condenar, digamos assim, a repressão no Tibete, o presidente francês amainou, diz Cohn-Bendit que a troco de centrais nucleares e de comboios de alta velocidade.

Não há surpresa. De forma mais notória do que nunca, a competitividade sobrepõe-se à moral. Sendo o mercado global entendido, pelas democracias liberais, como o estado natural - ou até providencial - das coisas, os interesses chocam quase sempre com os princípios. Em menor escala, a repressão na União de Myanmar, em Agosto e Setembro do ano passado, foi como que um ensaio. Olhava-se, então, para os interesses de empresas estrangeiras no país e via-se, com clareza, em que medida era frágil a pressão do Ocidente sobre a junta militar. Assim é na China. Muito mais.

Nem só a muralha é grande. Mais de 1300 milhões de pessoas fazem da República Popular da China o país mais povoado do Mundo. Estão espalhadas por 9,5 milhões de quilómetros quadrados, muitas vivem em condições precárias, não obstante os 11,4% de crescimento da economia. À grandeza clássica do regime, assente no poder militar e na condição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, sucede a força económica com que Pequim, mediante peculiar adesão ao capitalismo, constrói o estatuto de superpotência.

Há um século, o gigante adormecido era um joguete nas mãos das potências do tempo. Para chegar ao que é hoje, passou por muitas convulsões. A revolução nacionalista do Kuomintang (agora acantonado em Taiwan), a guerra com o Japão, a luta entre nacionalistas e comunistas, o triunfo destes, a proclamação da República Popular, a 1 de Outubro de 1949. E depois, claro, essa revolução a que se chamou "cultural", o "Grande salto em frente" de 1958, a repressão dos intelectuais, o silenciamento dos críticos, a reeducação pelo trabalho. A iniquidade escudada no "Pequeno Livro Vermelho" com a doutrina de Mao Tsé-Tung, o choque entre comunismos e a ameaça da União Soviética, a construção do poderio bélico, a aceitação pelo Mundo, em detrimento dos nacionalistas da ilha Formosa…

Enfim, a confusão que acabou de ficar escrita dá ideia da complexidade histórica que é a construção do país actual, mais resultante de um passado recente do que de milénios de civilização. Em Dezembro de 2001, a China foi aceite na Organização Mundial do Comércio, momento essencial para a explosão económica dos últimos anos, sendo o superavit da balança comercial tido já como factor estrutural da economia chinesa: um exportador cada vez mais sofisticado, que já lidera mundialmente a venda de tecnologias de informação para o estrangeiro.

Esta economia, durante anos e anos pautada pela planificação de Estado, tornou-se, entretanto, escrava da procura global (as exportações representavam, em 2006, 37% do PIB). E o país tornou-se um sorvedouro de energia. É o maior consumidor de carvão do planeta e, já se vê, o maior poluidor, tendo ultrapassado os Estados Unidos nas emissões de dióxido de carbono. Consome, por dia, sete milhões de barris de petróleo e acarinha quem lho vende, haja o que houver, daí que trave, no Conselho de Segurança, quaisquer medidas a propósito do conflito no Darfur ou do programa nuclear do Irão. A mundialização da China passa, ainda, pela concessão estratégica de ajuda ao desenvolvimento de países com abundância de recursos naturais, particularmente em África. E o mundo desenvolvido está enterrado até aos cabelos nesta dinâmica frenética: excluindo participações estratégicas no sistema financeiro chinês, o investimento directo estrangeiro no país ronda os 45 mil milhões de euros anuais. O crescimento significa industrialização e construção de infra-estruturas, das vias de comunicação às unidades de produção de energia, significa, enfim, as coisas de que falava Cohn-Bendit.

O gigante não assenta só em alicerces económicos. Embora marcadamente rural e em muitos aspectos miserável, está a tornar-se uma superpotência no domínio da qualificação. Com todos os defeitos de um sistema de ensino doutrinário, em que a formatação política dos cidadãos é feita desde tenra idade, o país quer ultrapassar os EUA em oferta e qualidade do ensino superior. A par do crescimento económico, a aposta na formação universitária é alucinante: são aí investidos 4% do PIB (1% em 1998); 34 mil estudantes doutoraram-se em 2006 (sete vezes mais do que dez anos antes); o número de alunos matriculados passou de menos de 10% para 21% da população jovem; o sistema é, no Mundo, o que tem maior variedade de cursos e graus académicos.

As pessoas são o real indicador da mudança acelerada. O crescimento demográfico foi controlado, devido à política de filho único encetada em 1979, mas isso resultará, em combinação com as melhorias sanitárias, num envelhecimento da população que poderá pôr em causa a permanente necessidade de mão-de-obra. Também as mentalidades mudam. O desenvolvimento de zonas como Xangai levou, já, ao aparecimento de uma classe média que a ortodoxia maoísta quis erradicar, porquanto dali sai sempre a contestação. Desse grupo nasceu uma nova forma de pensar, que alia a competitividade individual capitalista às paciência, persistência e obstinação chinesas. E as raparigas já pensam mais numa carreira profissional do que na prioridade de constituir família.

Existe, seja lá o que for, uma estratégia chinesa de domínio mundial. Os Jogos Olímpicos fazem parte disso. Uma colossal acção de propaganda, uma forma de afirmação ideológica, atendendo a que no Extremo Oriente existe estreita ligação entre o desporto e a política, uma até ver bem sucedida oportunidade para o Mundo se vergar ante tamanha grandeza. Mas não haja dúvidas de que essa grandeza, embora real, é também encenada, imposta e minada por graves problemas.

A letra T, embora exterior à escrita ideográfica chinesa, é a que mais pesadelos dá a Pequim. É a letra inicial de Tibete, é a letra inicial de Taiwan. Duas parcelas territoriais de que praticamente não se pode falar. E se o reduto dos nacionalistas é um país que não existe, por pressão comunista, o mesmo não pode dizer-se da causa tibetana, ainda mais palpável com os Jogos Olímpicos. Anexado em 1950, sujeito aos horrores do "Grande salto em frente" e repovoado por migração forçada de chineses (Pequim nega), o Tibete tem estatuto de região autónoma, embora o regime comunista tenha levado a cabo a virtual destruição da identidade. Se a população tibetana se rebela, como sucedeu recentemente, é esmagada de pronto, e o Dalai Lama, que chefia um Governo no exílio, é prontamente apontado como incitador da violência.

O que se sabe é pouco. Sabe-se sempre pouco sobre os assuntos controversos, na China, porque o Partido Comunista, isto é, o Estado, exerce um controlo apertadíssimo. Num país onde abundam os prisioneiros de consciência e onde, segundo relatos, é mantida a reeducação pelo trabalho, os desvios à regra não são permitidos. Não há liberdade de imprensa, a censura é brutal. Apesar de ser o país com mais utilizadores da Internet (220 milhões) a era da comunicação é filtrada e refiltrada em nome de um Estado que se sobrepõe a todos os aspectos da individualidade.

A aproximação dos Jogos tem levado ao recrudescimento da repressão, exercida sobre um vasto leque de pessoas, dos activistas dos direitos humanos, silenciados, aos pedintes, escondidos em parte incerta para que não surjam nas fotografias. No último relatório sobre o país, a Amnistia Internacional diz que não há progressos, apenas deterioração. Em 2004, numa emenda à Constituição, os chineses declararam que "o Estado respeita e protege os direitos humanos". Mas a política é feita de verdades relativas. Políticos que são, também os Jogos fazem do olimpismo um conceito relativo.

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* texto publicado, hoje, no caderno "Domingo", do JN; é inusitadamente longo, para aquilo em que os jornais se vêm transformando, mais o é ainda para os blogues; fica o registo e o artifício descarado de alimentar A criação do mundo com prosas já aviadas noutras paragens...

2 Responses to “Dragão impiedoso *”

  1. # Blogger MCP

    Belo texto.

    Cheers!  

  2. # Blogger Jorge Simões

    Longo sim, mas gostei de o ler. Um abraço.  

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