A criação do mundo


Solnado

Apenas para que fique registado, o perfil de Raul Solnado que fiz para a edição de hoje do "Jornal de Notícias":


Do berço à idade da sabedoria
fez rir como quem quis fazer o bem

Fez da dor física a primeira gargalhada que provocou, não passava então de quatro anos de Raul, Solnado pelo pai, Almeida por banda da mãe que jamais conheceu, morta dias depois de o largar no mundo: "A maior tristeza da minha vida". Pois foi esse garoto, em tronco nu no pátio de casa, na lisboeta Madragoa, que não conteve a aflição quando uma pomba lhe cravou as unhas no ombro: "Doeu-me tanto que dei um grito: 'foda-xe!'. Então, ouvi uma tremenda gargalhada dos amigos do meu pai. Ele pôs-me de castigo, mandou-me para o meu quarto. Era a minha primeira perplexidade. Tenho êxito, faço rir e sou castigado e vou preso? Que mundo é este onde cheguei?".

Tal estreia prenunciava várias coisas, com excepção do caminho fácil e brejeiro que nunca trilhou ("Tenho pena do público que se ri dos palavrões. Tenho imensa pena de um cómico que precisa de dizer palavrões para provocar o riso"). Prenunciava, claro, notável habilidade para espalhar boa disposição, materializada numa carreira que ultrapassou o meio século, mas também a alma sofredora que há em cada grande cómico, espécie rara numa floresta de humoristas inconsequentes: "Nós temos de ver o ridículo com uma lupa muito grande, e isso magoa".

Várias eram as regras de ouro de Raul Solnado, no que respeita ao ofício de fazer rir - em que não se esgotava o seu mérito de actor, basta recordar o chefe de brigada Elias Santana a que deu vida em "Balada da praia dos cães", de José Fonseca e Costa. Regras que podiam dizer muito do carácter deste homem, como a de nunca fazer humor com os fundamentos da democracia ou com a figura do presidente da República, pelo que esta representa.

Tal não o isentou do turbilhão de equívocos em que tantas vezes navegou o Portugal revolucionário. Como o próprio contava, a participação no celebrado programa "Zip Zip" valera-lhe, entre os últimos acólitos do Estado Novo, o rótulo de perigoso esquerdista. Quando se deu o 25 de Abril, estava na Roménia, apercebendo-se aí das misérias do regime de Ceausescu, que o levavam a rejeitar assumidamente o comunismo, logo lhe sendo grudado outro rótulo. Chegou a estar inscrito no PS, durante dois anos, e desvinculou-se em 1976, aprovada que estava a Constituição. Acreditava que os actores não devem envolver-se em actividades partidárias e, na realidade, a única militância que não abandonou foi a que o vinculava ao Clube de Futebol "Os Belenenses".

Não são detalhes desses, todavia, que fazem de Raul Solnado uma presença quase genética em gerações de portugueses. Dos que o viam nos palcos ou na televisão, dos que o ouviam na rádio ou nos discos de 45 rotações, virados à pressa para não perder a continuação de histórias como a da "Guerra de 1908", texto que ele traduziu de um original espanhol, sem fazer grandes alterações, mas que lhe estará sempre associado no imaginário do grande público.

Solnado, "fábrica de rir", assim ele mesmo assumiu, só seria palhaço no sentido nobre dado pela ópera de Leoncavallo ("ri da dor que te envenena o coração"). Não porque tenha tido uma vida de sofrimento - foi "dura mas saborosíssima", disse, ao fazer 79 anos -, mas porque foi protagonista de uma existência em nada superficial. Porque quando queria fazer rir tinha preocupações sociais, mesmo que nem sempre fossem muito evidentes. Pela profundidade do que dizia, em entrevistas, o Raul exterior às personagens, pela grandeza de projectos como o da Casa do Artista, a que se lançou com alma a par de Armando Cortez, outro grande actor remetido para os palcos da memória.

O Raul da maturidade ainda seria, na essência, aquele menino magoado pela pomba. Tal como seria o actor que trabalhava feito doido em início de carreira, chegando a participar em 21 espectáculos nos quatro dias de um qualquer Carnaval. Tal como seria aquele homem que protagonizou dois dos mais revolucionários momentos da televisão portuguesa ("Zip Zip" e "A visita da Cornélia"). Mas era mais do que isso. Dele exalava serena e terna simpatia, mesmo quando falava da morte, dizendo que nunca quereria morrer em palco e advogando em favor da eutanásia, pelo direito de cada um a optar, com lucidez, pelo fim do sofrimento.

"Não quero que ninguém intervenha entre mim e Deus", dizia, vincando as peculiaridades de uma religiosidade "profunda", de que o palco seria um dos templos essenciais. Solnado, o primeiro em Portugal a fazer este tipo de comédia a que se chama "stand up". Sozinho entre a cortina e o público que explode em aplausos: "É a felicidade recompensada".




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