A criação do mundo


Um mito desfeito

Trinta e tal anos mergulhado em francesinhas, passe o exagero inspirado pelo incontornável molho, e só hoje me decidi a curvar os joelhos sob uma das cinco mesas do Bufete Fase. Para os não iniciados, refira-se que o estabelecimento, asseado cubículo em Santa Catarina, junto à Fontinha, pouco mais serve além do tripeiríssimo petisco, por sinal regado por esplêndida cerveja de pressão (Sagres, quem diria!). Aos mesmos se adiante que uma aura mítica envolve há muito as francesinhas que ali se fazem e comem, pelo que há quase sempre uma insuportável fila de espera na rua. Porém, desde sempre torço o nariz quando alguém rotula isto ou aquilo de "o melhor", no caso "as melhores francesinhas do Porto", evitando dispensáveis desilusões. À francesinha do Fase, mesmo admitindo que não é má de todo, aponto vários defeitos, não só no que respeita ao molho, com excessivo gosto a tomate, como ao recheio: a salsicha fresca, soube depois que porque a assam, em pouco se diferencia da linguiça, que, adiante-se, não é da qualidade apropriada para a francesinha; misturar bife (o pecado capital) com carne assada não faz sentido, devendo apenas usar-se uma das opções, sendo a segunda claramente preferencial; faltam outras carnes que complementem o sensaborão fiambre; o pão, que deve ser tostado para conferir firmeza ao todo, está ali quase esturricado, esfarelando-se ao contacto com o garfo...

Não adianta. Se me perguntarem quais as melhores francesinhas, terei dificuldade em responder, mas nunca apontarei as do Bufete Fase. Em termos de recheio, voto nas da Cufra II (Avenida da Boavista), quanto ao molho selecciono o do Chamiço (Rua da Constituição), acrescento as do Convívio (Rua de Gonçalo Sampaio - onde como mais, apenas por ser sítio frequentado por um grupo de amigos), somo as da Regaleira (Rua do Bonjardim - valorizando a tradição de ali terem as francesinhas sido inventadas) e finalizo com as do Pontual (Rua do Almada - que pecam pelo molho, mas ganham pela fauna que por ali pára, reminiscência do perdido Café Luso). Muitas outras surgiriam na lista à frente das do Bufete Fase, apesar de tudo infinitamente melhores do que a que há muitos anos me serviram em Guimarães, insuportavelmente doce por causa do ketchup com que confeccionavam o molho.

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"Ai de mim! Estou tão velho e tão cansado! Li todos os livros do Mundo, aprendi todas as coisas que é possível aprender, conheço todos os mistérios da vida e da morte. Mas tudo o que sei é inútil e silencioso, sem amigos e sem ninguém com quem conversar, porque as pessoas têm medo de mim e não se aproximam, temendo que eu conheça os seus segredos e não podendo suportar isso. Até morrer me está vedado, porque nem mesmo a Morte, com os seus mil disfarces, me pode surpreender!"

Manuel António Pina, História do Sábio Fechado na sua Biblioteca

Nem sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo, como proclamava Ricardo Reis, nem aquele que vive irremediavelmente entranhado nos livros. Abençoada ignorância que permite que as pessoas de mim possam aproximar-se, tornando-me menos velho e mais descansado quando o calendário dá a cambalhota deste três de Abril. Pela amizade me chegou hoje às mãos, logo após a meia-noite, um livrinho lindíssimo ainda com cheiro a tinta fresca. Teatro para as crianças que todos devemos saber ser, de onde saltou o textinho que este post encima, aparentemente feito à medida para que eu possa agradecer aos que de mim se têm lembrado à passagem do quadragésimo segundo aniversário, tornando-me mais vivo e mais sábio.




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